Com o presente artigo, começo minha trajetória como colunista do “Vanguarda do Norte”, escrevendo sobre direitos infantis, a partir de um mito que encontrei nos tempos de navegador missionário, pesquisador e de contatos com o povo ribeirinho, às margens dos grandes rios e lagos da Amazônia. Era real essa marginalidade da vida nas áreas afastadas dos centros urbanos ou das sedes municipais. Trato do “Mito do Poço do Tubá”, entremeado de esperanças de um dia ver a cidadania chegar para todas as crianças e idosos.
Aconteceu, segundo o mito, que crianças caíam no rio e desapareciam sem deixar pistas, porque eram “devoradas por uma ou mais feras’. Ninguém sabia explicar o mistério. Havia apenas uma ribanceira alta e solitária, que, no final das tardes, recebia as mães que vinham chorar seus filhos perdidos. Posicionavam-se por debaixo de uma castanheira encurvada, que bebia água pelas folhas, cujos ramos tocavam no rio e que nunca mais dava flores e nem frutos. Perguntei o que aconteceu.
Contaram-me o seguinte: um monstro, qual fera comia crianças, uma a uma, que chegassem à margem para apreciar o movimento do rio, às vezes, ver o rebojo da correnteza, o movimento dos regatões, o compra-compra das mercadorias e a entrega da produção. Algumas vezes, havia festa à noite toda até o amanhecer, e servia-se muita bebida forte para distrair os adultos e deixar as crianças soltas na diversão.
Um sábio e velho indígena falou: “Olhem as outras castanheiras, elas estão erguidas para o céu, enquanto aqui, à beira do rio, há tristeza, desolação e saudades. Quando a festa acaba, o choro sempre recomeça. Pois não param tantas mortes e a ausência de nossos filhos”.
Através de um sonho, o indígena revelou e foi decifrando as lágrimas das mães, convocando-as: “Mulheres, uni-vos! Reuni-vos, deixai o cabelo crescer, fazei um trançado forte e preparai-vos para o combate; amarrai o trançado no tronco da castanheira. Na outra ponta, um menino ainda vai sumir, porque estará preso numa estaca, como um peixe de isca. Será o último sofrimento, mas será libertador. Quando a fera passar, podeis dar para ela, mas soltai todas as embarcações do porto”.
Assim aconteceu, apesar de todos os gritos de dor e de protesto da oposição. A castanheira dobrou com a força do mostro, houve um estrondo, todas as árvores por perto perderam as folhas e o bicho nunca mais voltou. A castanheira, embora curvada, voltou a florescer a cada ano com festas, missas e muita alegria. As famílias cresceram e as crianças voltaram a pular na água, brincar de mergulhar e fazer da canoinha a sua bicicleta.
Está lá a castanheira como testemunho, livro aberto, notícia inesquecível, sinal inequívoco de que o povo unido e consciente de suas opressões, jamais será vencido. Marca de que um povo informado e de olhos abertos não será enganado. Gente que se libertou e fez a vida voltar a ser livre. Nunca mais as mães permitiram que os patrões levassem crianças para serem empregadas domésticas na cidade grande.
Este mito tem muito a nos dizer. Não pertence mais ao velho indígena e nem a quem contou ou recontou. Perdeu-se o autor originário e se fundiu no leitor que luta contra o trabalho infantil e toda a forma de exploração sexual de crianças.
“Quem tem ouvidos que ouça, escute e ausculte o coração das mães que perderam seus filhos!”