Era o poeta Mário Quintana que dizia haver sido um menino por trás da vidraça. Como um peixe
num aquário. Vendo a vida passar lá fora pois por uma inclinação natural preferia refugiar-se nos livros.
Imbuir-se nas cores e nos movimentos imaginativos dos contos mágicos que povoam a literatura
infantil. Também fui uma menina por trás da vidraça. Filha única, meus amigos eram os livros. Os livros
e a Marluce. Marluce sempre foi presença contínua, mesmo distante. Leu comigo página por página a
integrar nossa história de vida. Marluce é como um “Lusíadas”. Um “Dom Quixote”. Um clássico da
literatura em amizade. Ali, como livro fiel e eterno no lugar mais visível da biblioteca de meu viver. O
ano letivo para mim constituía-se em diversão. Os estudos e os colegas faziam parte desse lazer com
responsabilidade: notas altas, aliadas a laços afetivos, cultivados para o consumo imperecível de muitas
e muitas décadas. E aterrisavam as férias! E a solidão desembarcava em meu peito. É bom frisar que a
geração dessa Manaus-infante era desprovida de entretenimento que a pós-modernidade nos propicia
hoje em boa hora. Sem televisão, sem vídeo-game, sem “shopping”, sem internet, sem McDonald’, sem
Caribe, Miami ou Fortaleza, sem crediários… Eram bem poucos os afortunados a usufruir de férias no
Rio de Janeiro. Retornavam carioquíssimos. Com sotaque, bronzeados e gabolas. É verdade que em
matéria de lazer Manaus de vez em quando recebia um circo ali na Praça 14. Tínhamos um Festival
Folclórico no mês de Junho; as pastorinhas do Luso e o Presépio de Branco e Silva no Natal. Ah! E os
cinemas! Dez grandes salas para filmes repetitivos. Levanta a mão Marluce! Não me deixa falsear a
verdade, se não vimos mais de dez vezes “Sissi” (a trilogia), “La Violetera”, “Candelabro Italiano”,
“Dio Come ti amo”, “Os dez Mandamentos”, “Ben-Hur”, “Rei dos Reis” e o recordista em exibições
cinematográficas “A Noiva…” Também tínhamos as celebrações dos aniversários dos amigos, sempre
feito na sua própria casa com vatapá, rizoto de galinha, maionese, salgadinhos, bolo e brigadeiro. Além
do nativo guaraná, Baré, Tuchaua, Andrade, Luseia, Real e Magistral. Ainda não havia sido implantado
o império das bebidas multinacionais. Tínhamos as celebres tubaínas. Mas o que nos faltava em
tecnologia avançada sobrava em criatividade. Nas brincadeiras de rua, nos “assaltos” às casas de família
por foliões no carnaval e batalhas de confete; nas fogueiras e os foguetes dos Junhos; na parada escolar e
militar da Semana da Pátria com fardas reluzentes, rataplans, passos cadenciados, bandeiras, cor, luz,
sons perenes da banda do Benjamim Constant, e o Colégio Estadual e Instituto de Educação com as
acrobacias de suas balizas maravilhosas… Mas por uma tendência da natureza eu gostava da leitura.
Principalmente quando pousavam as férias. E a solidão abria as bagagens em meu peito. E Marluce
viajava para Parintins onde estava parte de sua família. A biblioteca do Colégio Santa Dorotéia cedia às
coleções de Contos Maravilhosos e Mitológicos do Universo, as obras de Monteiro Lobato, e a Série
Sagrada (coleção de dezenas de revistas cada uma narrando a vida de santos e história da Igreja
Católica). Essa leitura proporcionou vibração e policromia àquele tempo dos homens de horas longas.
Se me permitem dizer, ponho em cada frase não a nostalgia ou melancolia, mas dignidade e um
indisfarçável romantismo. Tudo isso para que a memória não adormeça com o tempo perdendo sua
eloqüência. Muitas vezes é subtraída sua substância como se a recordação de uma fase pretérita ficasse
convertida numa simples gravura. Estática. Numa representação aquosa do fato e não do fato real e
vivido. Isto é, sabemos que existiu uma Manaus-criança, e que nossa infância tinha essa paisagem social
terna e sofrida, só que você hoje não pode senti-la mais. Nunca adormecer a memória! Para isso basta
por em cada palavra não a nostalgia ou melancolia, mas dignidade e um indisfarçável ar de
romantismo… No mês que Marluce celebra mais um aniversário que um dia caiu na terça-feira de
Carnaval.
CARMEN NOVOA SILVA, é Teóloga e membro da Academia Amazonense
de Letras e da Academia Marial do Santuário de Aparecida-SP