Entre meus excessos figura o de falar com demasiada freqüência do que sinto. Possuo
genuína reverencia pela capacidade de certos homens ao se tornarem pais de revestirem-se da
audácia do amor infinito.
Situo-me regionalmente em nossa cidade e por meio de narração memorial já que minha
natureza de escritora é a do “Homo narrans”, indico inúmeras figuras paternas da Manaus terna e
dura dos anos pós-derrocada da economia da borracha. Eram na maioria das vezes pais de proles
numerosas. Doze, dez, oito filhos… Tinham gravado nos íntimos o “crescei e multiplicai-vos” do
Gênesis. Cito aqui algumas das famílias numerosas de então: a dos casais Santa e Tude Menezes,
José e Amine Lindoso, Thales e Chloé Loureiro, Nazareth e Pio de Souza e Orígenes e Berenice
Martins.
Resgato nestas linhas a feroz realidade da época de economia falida e de estagnação
financeira frente a homens que tinham seus filhos como significado de bênçãos e no peito guardada
a determinação de criá-los e educá-los com o sentido da lei do sentimento-maior: O amor. Mas
para conseguir atestado de pai-exemplo não é necessário a exigência da quantidade de filhos, mas a
qualidade em excelência da abertura de espírito e a boa-vontade de acolhê-los como receituário de
sabedoria para encontrar as bonanças advindas do lídimo ser paterno. Por isso conto agora a história
de um pai chamado Elias. Pai de três filhos. Dois morreram ainda bebês. Restou-lhe apenas uma
filha. A do meio. Fez daquelas dores e lutos, ressurreições. Ressurreições estas sempre sendo o
indicativo do verbo SER, jamais o imperativo do verbo TER. E este estilo de vida passou-o aos
seus.
Casou-se aos quarenta anos, porque antes, aos dezenove anos imigrou da Espanha para o
Amazonas (Manaus) indo trabalhar na humílima profissão de padeiro. Muitas vezes cedinho até
debaixo de chuva levava o alimento em cestos de vime à cabeça não deixando faltar o pão de cada
dia à porta de cada freguês. Esse era então costume da Manaus pacata, miúda e serena dos anos
trinta. Depois fez sociedade com um irmão e progrediram ano após ano com muita luta e suor no
ramo de cerâmica. No início dos anos cinqüenta casou-se mesmo tardiamente, mas por sua ótica de
constituição de família e paternidade responsável devia existir uma certa estabilidade financeira
onde os filhos pudessem crescer em plenitude. Crescer em idade, sabedoria e graça. Esta é a história
do pai de nome Elias. Pai de uma única filha. Feliz essa filha a quem o pai à hora da doença socorre,
medica, preocupa-se e protege… Feliz a filha a quem o pai mesmo sobrecarregado de trabalho,
arranja tempo para comprar livros, cadernos, matricular e levar diariamente na escola. Feliz a filha a
quem o pai encarrega-se do dentista, de arranjar mestres particulares nas matérias em que estiver
fraca, e até da professora de ballet e piano. Filha bem-aventurada essa a que possui um pai com
tempo para dizer “sim” e com tempo para dizer “não”. Um pai sempre presente e participante.
Desde os assuntos importantes aos mais triviais. Filha feliz a do pai chamado Elias que tinha o dom
especialíssimo da honestidade, da partilha e da transparência. Para ele, com aquele jeito franciscano
de ser até o “achado era roubado”. A filha, certo dia achando elevada quantia em dinheiro, ele
lamentou a má sorte de quem o perdeu e fez o discurso sobre o dever cristão e humano de doá-lo
aos necessitados já que se desconhecia o dono. Ah! Filha feliz! Enriquecida por ensinamentos dos
valores eternos. Hoje, somente as rimas ricas da memória podem trazer em imortalidade o perfeito
ritmo desses cantares. Traduzidos em atos heróicos. Sim, porque produtos de lágrimas, de coragem,
de fé, por vezes tão extraordinários a impulsionar esse sentimento filial extremo que dedico a Elias
Novoa, meu pai. Eu, a filha bem-aventurada do pai chamado Elias. Esse que se revestiu da audácia
do amor infinito…
CARMEN NOVOA SILVA, é Teóloga e membro da Academia Amazonense
de Letras e da Academia Marial do Santuário de Aparecida-SP