Nesta semana, os democratas irão consagrar uma das jogadas de poder mais audaciosas da história política moderna, enquanto se reúnem para uma convenção que foi rapidamente reconfigurada para tentar levar Kamala Harris à presidência histórica.
Tudo começa com a adulação ao presidente Joe Biden, que discursará na noite desta segunda-feira (19) para uma multidão grata por ele ter finalmente concordado em “passar o bastão”. Mas o momento será agridoce para o presidente de 81 anos, que, apesar de um mandato produtivo, foi pressionado pelos líderes de seu próprio partido a encerrar sua candidatura à reeleição quando uma carreira de 50 anos sucumbiu ao peso da idade.
Biden disse aos americanos no mês passado, ao anunciar sua saída da corrida eleitoral, que “a história está em suas mãos. O poder está em suas mãos. A ideia da América está em suas mãos”.
A resposta de seu partido foi uma rápida coesão em torno de Kamala Harris, de 59 anos, frustrando as esperanças de alguns ativistas por uma corrida com múltiplos candidatos entre as estrelas em ascensão dos democratas.
Com Harris e o governador de Minnesota, Tim Walz, liderando sua nova chapa, os democratas agora esperam frustrar o retorno de Donald Trump à Casa Branca em meio ao pânico sobre a perspectiva de um segundo mandato que ele planeja dedicar à “retribuição”.
Os republicanos deixaram sua convenção em Milwaukee há um mês, convencidos de que estavam a caminho de uma vitória esmagadora sob um candidato que emergiu ferido, mas desafiador, de uma tentativa de assassinato.
Naquele momento, a Convenção Nacional Democrata estava se moldando como uma despedida sombria para um presidente envelhecido que estava perdendo para Trump em estados decisivos. Mas Harris deu um choque de energia e alegria ao seu partido, reparando algumas das divisões potencialmente catastróficas na coalizão de Biden.
Ela assumiu uma pequena vantagem sobre Trump em algumas pesquisas nacionais, restabelecendo uma corrida acirrada com o ex-presidente nas médias das pesquisas. E ela restaurou múltiplos caminhos para os democratas assegurarem os 270 votos eleitorais necessários para vencer a Casa Branca. A mudança de humor no partido é impressionante, mesmo que os maiores testes de Kamala Harris ainda estejam por vir.
“Primeiro de tudo, estávamos falando sobre uma nomeação para reeleição, uma renomeação. E agora estamos falando sobre algo completamente diferente”, disse J.B. Pritzker, governador democrata de Illinois, à CNN no domingo (18). “Esta é uma candidata que energizou o partido de uma forma que eu certamente não via desde 2008”.
A reformulação da corrida deixou Trump – que busca se tornar o segundo presidente de um mandato a vencer um segundo mandato não consecutivo – desorientado e ansiando por seu confronto contra Biden, cujas esperanças se dissolveram após seu desempenho desastroso no debate da CNN em junho.
O candidato republicano enfureceu-se em uma série de eventos de campanha descontrolados que deixaram os estrategistas do partido desesperados e implorando para que ele mantivesse o foco.
Kamala Harris ainda não enfrentou perguntas difíceis em um evento sem roteiro, mas tem sido bem-sucedida em se apresentar como a agente de mudança na corrida presidencial, apesar de ter passado quatro anos desempenhando um papel fundamental na impopular presidência de Biden.
Democratas sabem que a “história” está em suas mãos
A tentativa tardia do partido de salvar o que muitas autoridades acreditam ser a eleição mais crítica de uma geração está repleta de riscos.
Os democratas colocaram seu destino nas mãos de uma vice-presidente que não era vista como uma das forças políticas mais fortes de seu partido. Notavelmente, para uma candidata à nomeação do partido, Harris ainda não recebeu um único voto para presidente.
Ela encerrou sua primeira campanha em 2019, antes das assembleias de Iowa, e conquistou a nomeação desta vez por aclamação, após uma votação virtual dos delegados, em vez de uma disputa nas primárias. Ela enfrenta um debate crucial com Trump em 10 de setembro, e sua capacidade de manter o ímpeto da campanha poderá ser testada em futuras entrevistas na televisão.
Os democratas se reúnem sob a sombra histórica da convenção de 1968 em Chicago, quando a violência dos ativistas, provocada pela guerra no Vietnã, transmitiu uma imagem desfavorável do partido aos americanos, que eventualmente abraçaram uma mensagem de lei e ordem republicana da direita.
Há outros paralelos com aquela convenção fatídica – ela contou com um vice-presidente democrata, Hubert Humphrey, que estava tentando (e acabou falhando) vencer a eleição depois que o presidente em exercício (Lyndon B. Johnson) foi forçado a desistir de sua candidatura à reeleição.
Manifestações são novamente esperadas na próxima semana, especialmente entre apoiadores pró-Palestina que têm perseguido Biden por seu apoio a Israel, depois que dezenas de milhares de civis foram mortos na guerra em Gaza.
No entanto, não está claro se os eleitores progressistas e árabes-americanos, que registraram votos de protesto contra Biden nas primárias – especialmente no indeciso estado-chave de Michigan – representarão uma ameaça semelhante às esperanças de Harris em novembro.
Harris estará sob pressão extraordinária com seu discurso na noite de quinta-feira (22) para se apresentar aos americanos ainda pouco familiarizados com sua história de vida e ideias. É aqui que o discurso de Biden será especialmente crucial, quanto ele entrega as rédeas políticas do partido a Harris, mesmo enquanto ainda é presidente.
Harris transforma a campanha democrata de um foco no passado para o futuro
Para reforçar a mudança, os democratas recorrerão ao ex-presidente Barack Obama na noite de terça-feira (20). Vinte anos depois de ele surgir como um legislador desconhecido de Illinois com um discurso eletrizante na convenção, e quase oito anos desde que deixou a Casa Branca, o partido mais uma vez contará com a habilidade retórica do 44º presidente.
Kamala Harris mal cometeu erros ao infundir seu partido com um espírito de otimismo e esperança ao estilo Obama. Uma convenção vibrante pode projetar um espírito de unidade e dar a ela um impulso nas pesquisas, entrando na reta final da corrida.
Harris, se beneficiando da comparação geracional com Biden, de 81 anos, e Trump, de 78, está apresentando sua nova campanha como uma luta pelo futuro dos EUA contra um cenário de possibilidade histórica: se eleita em novembro, ela seria a primeira presidente negra e a primeira presidente indiana-americana.
Em um comício animado na Filadélfia no início deste mês, no qual apresentou Walz como seu companheiro de chapa, Harris enraizou seu apelo aos eleitores na liberdade – de oportunidades econômicas, direitos reprodutivos e de voto, e o direito de estar a salvo da violência armada. “Tim e eu temos uma mensagem para Trump e outros que querem retroceder nossos direitos fundamentais: não vamos voltar (ao passado)”, disse ela.
Kamala Harris, ex-promotora e procuradora-geral da Califórnia que colocou criminosos financeiros e sexuais atrás das grades, também criou uma nova mensagem contra Trump, que foi indiciado quatro vezes e aguarda sentença após ser condenado em um julgamento por suborno em Nova York.
“Enfrentei perpetradores de todos os tipos – predadores que abusaram de mulheres, fraudadores que enganaram consumidores, trapaceiros que quebraram as regras para seu próprio benefício. Então, ouçam quando eu digo: eu conheço o tipo de Donald Trump”, disse ela.
Até agora, as táticas de Kamala Harris estão funcionando
Duas pesquisas divulgadas na véspera da convenção – da CBS News/YouGov e da ABC News/The Washington Post/Ipsos – mostraram a vice-presidente com uma pequena vantagem sobre o ex-presiente.
E as pesquisas em estados decisivos mostram que Harris está competitiva nos estados da “muralha azul” que precisam ser vencidos: Wisconsin, Michigan e Pensilvânia. Ela também reabriu múltiplos caminhos para a Casa Branca, incluindo estados do Cinturão do Sol que pareciam fechados quando Biden era o candidato.
No entanto, Harris está apenas começando um confronto com Trump, que demonstrou que fará de tudo – inclusive ameaçar a democracia – para conquistar o poder. O ex-presidente, por exemplo, começou a se referir à mudança de Biden para Harris como um “golpe” inconstitucional, levantando temores de que ele esteja preparando o terreno para contestar outra eleição democrática se perder em novembro.
Trump lançou um novo ataque a Harris no fim de semana, depois que ela revelou seu plano econômico, que incluía uma promessa de reduzir o custo da moradia e usar o poder federal para reprimir os gigantes dos supermercados que ela acusou de manipular preços. Trump aproveitou as críticas de muitos economistas convencionais de que o plano equivalia a controles de preços em economias estatais, o que tornava os itens básicos escassos nas prateleiras.
A abordagem de Harris, que é marcadamente populista e progressista, representa uma aposta, já que Trump já está tentando retratá-la como uma ultraliberal e socialista ao estilo da Venezuela ou comunista.
Mas, embora empregue uma economia questionável, o plano de Harris pode ter sucesso em termos políticos. Ela está cortejando eleitores desgastados por anos de inflação e altos preços após a pandemia. A maioria das pesquisas ainda mostra que Trump é mais confiável na economia do que ela.
Mas, em seu comício na Pensilvânia, no sábado (17), Trump mostrou sinais de preocupação de que Harris o superou em uma questão em que sua campanha tentou ancorar a eleição. Ele descreveu o plano da vice-presidente como “muito perigoso porque pode soar bem politicamente, e esse é o problema”.
Biden apresentou sua disputa contra Trump como uma luta pela alma da nação e uma busca vital para preservar a democracia. Mas ele também lutou para reconciliar sua própria impopularidade, especialmente na economia, com uma presidência que, em termos legislativos, pode ser a administração democrata mais prolífica desde a de Johnson.
Seu discurso em horário nobre na primeira noite da convenção – em vez de como originalmente previsto na última noite, que é o espaço reservado para o candidato – sublinhará de forma comovente a mudança na chapa democrata.
Em seu primeiro evento formal com Kamala Harris desde que desistiu de sua candidatura à reeleição, Biden pareceu emocionado com a recepção que recebeu da multidão dela nos subúrbios de Maryland.
Isso provavelmente foi uma amostra do amor que será derramado das arquibancadas do United Center em Chicago para um presidente que, apesar de sua relutância em deixar a corrida, é visto por seu partido como um exemplo de sacrifício político e patriotismo.
“O presidente Biden entrará na história americana como um dos presidentes mais consequentes de todos os tempos”, disse o líder democrata da Câmara, Hakeem Jeffries, à CNN. “Ele tomou uma decisão muito altruísta de passar o bastão para a vice-presidente Kamala Harris, que é uma líder corajosa, uma líder compassiva e uma líder de bom senso”.
Essa é exatamente a mensagem que os democratas esperam que milhões de americanos tirem de sua convenção.
Fonte: CNN.