Dois movimentos opostos estão em curso em Brasília, cada um deles tentando neutralizar o outro. Enquanto a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciava o julgamento do processo que acusa Jair Bolsonaro e outros sete réus de tentar um golpe de Estado, a 400 metros dali, no Congresso Nacional, aliados do ex-presidente e líderes do Centrão intensificavam a pressão pela aprovação da anistia aos investigados e condenados por atentar contra a democracia brasileira. Se depender de caciques de partidos de centro, a ofensiva resultará num perdão amplo, geral e irrestrito, o que beneficiaria Bolsonaro no caso da conspirata. Isso não abrange o veredicto do Tribunal Superior Eleitoral que o tornou inelegível.
Embora o ex-presidente ainda alimente o sonho de reverter a decisão, o movimento em curso pró-anistia tem como objetivo político abrir espaço a uma candidatura considerada mais moderada para tentar impedir a reeleição de Lula. Essa alternativa tem nome e sobrenome: Tarcísio Gomes de Freitas, governador de São Paulo, o preferido da elite econômica e da cúpula da da federação formada por União Brasil e PP, legendas que anunciaram recentemente a saída do governo.
A negociação em andamento é delicada. Prudente, Tarcísio até aqui jura fidelidade a Bolsonaro e diz que tentará a renovação do mandato de governador. Ele não dá um passo à frente porque, mesmo com cautela, já é criticado pelos filhos mais velhos do capitão, dois dos quais, o senador Flávio e o deputado Eduardo, sonham com uma postulação presidencial. Apesar disso, Tarcísio passou a fazer gestos mais incisivos rumo ao Palácio do Planalto. Ele declarou que, se suceder a Lula, sua primeira medida será indultar Bolsonaro. Tarcísio também mergulhou de vez nas articulações em favor da anistia.
O governador conversou sobre o assunto com o presidente do seu partido, Marcos Pereira, e telefonou para o presidente da Câmara, Hugo Motta, seu correligionário no Republicanos, para tratar do tema. Depois, foi a Brasília costurar o apoio de lideranças do Centrão e fez uma visita de cortesia à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, candidata a herdeira do espólio eleitoral do marido.
O périplo rendeu frutos. Apesar de controlarem quatro ministérios e outras joias da coroa, como a Caixa, União Brasil e PP, que juntos formam as maiores bancadas da Câmara e do Senado anunciaram o desembarque da gestão Lula, que é obviamente contrária à anistia. A decisão dos partidos revela compromisso tanto com o perdão aos golpistas quanto com a eventual candidatura de Tarcísio, que não será facilmente digerida pelo clã Bolsonaro.
“Tarcísio entrou de cabeça com a gente porque sabe que é injusto o que está acontecendo e que o Brasil precisa virar essa página”, afirmou Flávio Bolsonaro (PL-RJ). “Bom nome para disputar a Presidência no ano que vem é Jair Bolsonaro. Botam Bolsonaro como carta fora do baralho e ele não está fora”, acrescentou o senador, externando sua contrariedade com a pretensão de caciques do Centrão de livrar o pai dele da cadeia, mas não da inelegibilidade.
Ainda não há um texto fechado sobre a anistia, mas o lobby ganhou tração e fez o próprio Motta sinalizar que a proposta será pautada para votação, o que deve ocorrer provavelmente após o término do julgamento de Bolsonaro pelo STF. A pressão é enorme sobre o deputado, que chegou a ter sua cadeira de presidente da Câmara ocupada à força por bolsonaristas no motim realizado após a decretação de prisão domiciliar do ex-presidente.
“O Motta tem palavra, e a gente acredita que chegou a hora de ele cumprir a palavra. Temos a maioria do Congresso, que quer essa pauta”, disse o deputado Luciano Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara. A situação não é tão cristalina como sugere a declaração do parlamentar. Na Câmara, de fato, o caminho parece bem pavimentado. No Senado, no entanto, o quadro é diferente. Com a ajuda de ministros do Supremo, o presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre, tenta construir um texto que garanta perdão ou redução das penas à chamada “massa de manobra” do golpe, como a turba que participou da invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.
No modelo pensado por Alcolumbre, Bolsonaro, militares e ex-ministros julgados pelo STF não escapariam do cumprimento das penas. Filiado ao mesmo União Brasil que anunciou o desembarque do governo e responsável pela indicação de dois ministros, entre outros tantos cargos, o senador é aliado de Lula, com quem se reuniu na quarta-feira 3, e mantém ótima relação com integrantes do Supremo.
Ao contrário de Motta, Alcolumbre se mostra até aqui inflexível a um perdão que beneficie Bolsonaro. Essa resistência rende aplausos e gestos de apoio dos governistas. “Um golpe está sendo arquitetado dentro do Parlamento. Isso é uma traição à Constituição, à democracia brasileira, e um tapa na cara do povo brasileiro”, criticou o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ).
Essa queda de braço deve se intensificar nos próximos dias. Não é incomum a Câmara e o Senado tratarem do mesmo tema de forma distinta. Quando isso acontece e a divergência se cristaliza, geralmente a questão fica emperrada. Uma Casa não vota a proposta da outra, e vice-versa. Isso ocorreu algumas vezes nas gestões de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, que antecederam Hugo Motta e Davi Alcolumbre, respectivamente. Mesmo se um nó desse tipo for desatado, a anistia enfrentará o teste do Supremo. Na abertura do julgamento da Primeira Turma do STF sobre a suposta tentativa de golpe, o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, foi categórico ao rechaçar a possibilidade.
Em conversas reservadas, juízes do Supremo já fizeram chegar a líderes do Congresso o recado de que não há chance no regramento jurídico de anistia a crimes contra a democracia. Uma iniciativa nesse sentido, portanto, seria declarada inconstitucional. O precedente do então deputado bolsonarista Daniel Silveira é lembrado. Condenado a oito anos de prisão em razão de manifestações contra o Estado democrático, Silveira foi beneficiado por um indulto do então presidente Bolsonaro, que depois foi derrubado pelo Supremo.
Na ocasião, a relatora Rosa Weber lembrou que a concessão de indultos deve observar o interesse público, e não o interesse pessoal, que representaria a instrumentalização do Estado e de suas instituições pelo presidente da República para obter benefícios pessoais “de modo ilícito, ilegítimo e imoral”. Atualmente aposentada, Rosa Weber foi acompanhada pelo ministro Luiz Fux, que é a principal aposta de Bolsonaro e companhia para se livrar de uma condenação ou pelo menos receber uma punição mais branda no julgamento da tentativa de golpe. Em meio às incertezas envolvendo o futuro da movimentação em curso no Congresso pró-anistia, há a certeza de que essa discussão criará novos e fortes pontos de atrito entre os poderes Legislativo e Judiciário.