Jane Goodall, cujo trabalho de uma vida inteira como primatologista ajudou a ampliar a compreensão mundial sobre o comportamento e as emoções dos animais, morreu, aos 91 anos. A informação foi divulgada pelo instituto que leva seu nome, nesta quarta-feira (1º).
Seus estudos de campo com chimpanzés não apenas quebraram barreiras para as mulheres e mudaram a maneira como os cientistas estudam os animais, mas também documentaram emoções e traços de personalidade desses primatas que borraram a linha entre humanos e o reino animal.
Goodall morreu enquanto dormia, de causas naturais, na Califórnia, durante uma turnê de palestras nos Estados Unidos, de acordo com seu instituto.
“As descobertas da Dra. Goodall como etóloga revolucionaram a ciência, e ela foi uma defensora incansável da proteção e restauração do nosso mundo natural”, disse o instituto em um comunicado nas redes sociais.
As Nações Unidas, que a nomearam Mensageira da Paz em 2002, lamentaram sua morte e disseram no X, antigo Twitter, que ela “trabalhou incansavelmente pelo nosso planeta e por todos os seus habitantes, deixando um legado extraordinário para a humanidade e a natureza”.
Goodall chegou à Reserva de Chimpanzés do Riacho Gombe, na Tanzânia, em 1960, a pedido de seu chefe, o renomado antropólogo e paleontólogo Dr. Louis Leakey. Lá, aos 26 anos, fascinada há muito tempo pela África e seus animais – mas sem formação superior formal –, iniciou seu trabalho pioneiro observando e estudando esses primatas intelectuais em seu habitat natural.
No início, os chimpanzés fugiram dela.
“Eles nunca tinham visto um macaco branco antes”, disse Goodall a Deepak Chopra em 2019.
Tudo mudou quando ela conheceu um chimpanzé mais velho, a quem chamou David Graybeard. Depois de seguir David pela floresta, ela lhe ofereceu uma noz de palmeira.
“Ele pegou a noz, deixou-a cair, mas apertou meus dedos com muita delicadeza. É assim que os chimpanzés se tranquilizam”, lembrou Goodall. “Então, naquele momento, nos comunicamos de uma forma que deve ter sido anterior à linguagem humana.”
Vivendo entre os chimpanzés em Gombe, Goodall descobriu que os chimpanzés comiam carne e não apenas usavam ferramentas, mas também as fabricavam.
“Eu assisti, fascinada, enquanto os chimpanzés partiam em direção a um cupinzeiro, pegavam um pequeno galho com folhas e então o arrancavam das folhas”, disse Goodall no documentário “Jane”, de 2017. Os chimpanzés enfiavam os galhos arrancados no cupinzeiro e facilmente juntavam aglomerados de cupins para comer.
“Aquilo foi uma modificação de objetos, o início rudimentar da fabricação de ferramentas – algo nunca visto antes”, falou Goodall.
Esta jovem britânica, que cursava doutorado em comportamento animal apesar de não ter graduação, passou meses se aproximando da população local de chimpanzés, em vez de estudá-los à distância. Ela lhes deu nomes e aprendeu a ler suas emoções.
“Quando comecei a estudar os chimpanzés, não havia ninguém para me dizer como eu faria isso”, lembrou Goodall. “Em 1960, o mundo não sabia nada sobre os chimpanzés selvagens.”
As descobertas de Goodall e sua metodologia causaram grande comoção nos círculos acadêmicos e científicos: rastejar pela floresta para estudar chimpanzés que ela nomeava em vez de numerar, documentando suas personalidades e sentimentos — isso chocou seus colegas etólogos. Disseram-lhe que ela havia conduzido todo o estudo de forma errada, mas Goodall manteve-se firme em suas convicções.
“Minhas observações em Gombe desafiariam a singularidade humana”, disse Goodall. “Houve quem tentasse desacreditar minhas observações porque eu era uma jovem sem formação e, portanto, deveria ser desconsiderada.”
Goodall foi uma das três mulheres selecionadas por Leakey para estudar primatas em seu habitat natural, como parte de seu esforço para compreender melhor a evolução humana. Enquanto Goodall se concentrava em chimpanzés, Dian Fossey estudava gorilas e Birutė Galdikas estudava orangotangos. Às vezes, elas eram chamadas de “Anjos de Leakey” — uma referência à série de TV de sucesso dos anos 1970, “As Panteras “.
O mundo aprenderia sobre Goodall e seu trabalho em 1963, depois que seu primeiro artigo apareceu na National Geographic, intitulado “Minha vida entre chimpanzés selvagens”.
Leakey conseguiu uma bolsa da National Geographic Society para Goodall continuar seu trabalho e, em 1962, a National Geographic enviou o cineasta Barão Hugo van Lawick a Gombe para documentar o trabalho de Jane com os chimpanzés. Os dois se apaixonaram, casaram-se em 1964 e tiveram um filho três anos depois.
Goodall obteve seu doutorado em etologia – o estudo do comportamento animal – pela Universidade de Cambridge em 1965, e no mesmo ano ela e van Lawick fundaram o Gombe Stream Research Center.
Até hoje, a pequena floresta de Gombe, às margens do Lago Tanganica, abriga o estudo mais longo e detalhado de um animal em seu habitat natural em qualquer lugar do mundo.
Uma cientista iniciante
Nascida em Londres, Goodall diz que seu fascínio pelo comportamento animal surgiu quando sua mãe a levou para visitar uma fazenda quando ela tinha quatro anos e meio.
“Foi realmente emocionante. Ainda me lembro de conhecer vacas, porcos e ovelhas cara a cara”, lembrou Goodall em 2019 no podcast Infinite Potential, de Chopra.
Na fazenda, ela foi até um galinheiro, onde esperou pacientemente para observar uma galinha botando um ovo.
“Minha mãe estava me procurando desesperadamente, ninguém sabia onde eu estava, eles chamaram a polícia”, disse Goodall. “Você pode imaginar o quão preocupada ela estava, mas quando… ela viu meus olhos brilhando, (ela) sentou-se para ouvir a maravilhosa história de como uma galinha põe um ovo.”
Ela atribuiu o apoio da mãe naquele momento — e mais tarde na vida — à abertura do caminho para sua carreira.
“Um tipo diferente de mãe poderia ter esmagado essa curiosidade científica – e eu poderia não ter feito o que fiz.”
Goodall passou grande parte de sua infância ao ar livre, no topo de sua árvore favorita, lendo “em meu próprio mundo particular… sonhando acordada sobre a vida na floresta com Tarzan”. Foi quando ela decidiu que queria ir para a África para viver com os animais e escrever sobre eles.
Ela nunca desistiu do seu sonho e, quando jovem, trabalhou e “economizou cada centavo que pôde” para viajar para a África.
“Todos riam de mim porque eu era apenas uma garota, não tínhamos dinheiro e a Segunda Guerra Mundial estava acontecendo”, ela lembrou.
Ela sempre foi incentivada por sua mãe, que lhe dizia para “trabalhar duro, aproveitar as oportunidades, mas acima de tudo, nunca desistir”.
Espalhando sua mensagem pelo mundo
A missão original de Jane Goodall em Gombe era aprender tudo o que pudesse sobre os chimpanzés – os parentes vivos mais próximos dos humanos – na esperança de que seu comportamento “pudesse nos fornecer uma janela para o nosso passado”, disse ela.
“Sempre me surpreendo com o quanto somos semelhantes aos chimpanzés e, aliás, a outros animais também – compartilhando emoções como medo, dor, raiva e coisas assim”, disse Goodall.
“Os chimpanzés aprendem observando… mas (os humanos) podem, com palavras, discutir o passado e contar histórias sobre ele, e talvez fazer uso dele. Os chimpanzés certamente podem fazer planos para o futuro imediato – mas nós podemos fazer planos para o que faremos daqui a 10 anos”, acrescentou.
E ela disse que a capacidade de se comunicar verbalmente dá aos humanos uma responsabilidade única de preservar o planeta.
“Não é bizarro que a criatura mais intelectual que já existiu no planeta esteja destruindo seu único lar? Parece-me que há uma desconexão entre essa mente extremamente intelectual e o coração humano, que é amor e compaixão.”
Goodall começou a concentrar seus esforços na preservação ambiental depois de participar de uma conferência sobre conservação na África em 1986.
“Foi chocante ver que em toda a África, onde quer que os chimpanzés fossem estudados, as florestas estavam desaparecendo”, disse ela. “Foi então que percebi que… o papel que eu tinha que desempenhar era garantir que a próxima geração fosse melhor administradora do que nós. E eu precisava levar essa mensagem ao mundo.”
“Fui à conferência como cientista. Saí como ativista”, concluiu ela.
Hoje, o Instituto Jane Goodall, fundado por ela em 1977, dedica grande parte de seus esforços à conservação da vida selvagem, trabalhando em estreita colaboração com as comunidades vizinhas do Parque Nacional de Gombe para promover as perspectivas humanas e proteger seus tesouros naturais.
Em 2017, o Instituto fez uma parceria com o Google Earth, usando tecnologia de satélite de última geração para monitorar de perto o parque e seus chimpanzés.
Goodall não mostrou sinais de desaceleração aos 80 anos, viajando cerca de 300 dias por ano para se reunir com líderes mundiais sobre mudanças climáticas, visitar projetos de conservação e apoiar seu programa ambiental juvenil Roots & Shoots.
O surto de Covid-19 interrompeu suas viagens em 2020, mas Goodall continuou espalhando sua mensagem virtualmente, falando sobre as mudanças climáticas e também sobre seus pensamentos sobre o que levou à pandemia do coronavírus.
“Nossa relação muito próxima com animais selvagens nos mercados ou quando os usamos para entretenimento desencadeou o terror e a miséria de novos vírus”, disse ela no Anderson Cooper Full Circle.
Quando questionada sobre qual deveria ser seu legado, Goodall disse a Becky Anderson, da CNN, que esperava que ela “desse esperança aos jovens e… uma sensação de empoderamento”.