Em 10 de setembro, o MotorSport anunciou Eddy Cue como um dos palestrantes do Autosport Business Exchange (ABX), evento marcado para 15 de outubro em Nova York. A conferência, promovida pela plataforma global de mídia especializada em automobilismo, prometia reunir “do pit wall da Fórmula 1 ao Vale do Silício” para discutir a ascensão das corridas na América. Não por acaso, foi realizada na semana que antecedeu o GP de Austin.
O encontro, restrito a executivos e investidores, colocou o dinheiro da tecnologia ao lado dos tomadores de decisão da F1 no momento em que o futuro das transmissões da categoria nos Estados Unidos estava sendo definido. A presença do vice-presidente da Apple era o prenúncio da parceria que seria confirmada semanas depois.
Alexander Sherman, da CNBC Sports, acompanhou o painel e relatou uma “conversa estranha” com Cue. O contrato de US$ 140 milhões por temporada, válido por cinco anos, já estava fechado, mas ainda não havia sido anunciado. Cue, no entanto, não fez esforço para esconder o entusiasmo:
“Nós amamos a F1.”
O The Athletic observou que a Apple chegou à mesa com “uma vantagem” além da produção de “F1: O Filme”. O longa acumula US$ 629,3 milhões em bilheterias e se tornou o filme esportivo mais rentável da história
Cue mantém uma relação pessoal próxima com Stefano Domenicali, CEO da F1. No anúncio da parceria, fez questão de lembrar dos laços estreitos:
“Lembro-me de estar no escritório de Stefano em Londres há muitos anos, antes mesmo de pensarmos no filme. Isso é algo que sempre encaramos como uma grande oportunidade.”
A conexão pessoal e o momento consolidaram o maior investimento esportivo da história da Apple.
A posição da ESPN durante toda a negociação, por sua vez, sugere outro enredo para a história. Detentora dos direitos desde 2018, o canal não exerceu a sua prioridade em abril e não esticou a corda além dos US$ 90 milhões para uma renovação.
O perfil TV Grim Reaper resumiu a ironia dos desdobramentos das negociações:
“Assim como a MLS, a F1 pegou o dinheiro que ninguém mais estava oferecendo.”
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O poder da audiência e a fragilidade da escala
Dos US$ 3,4 bilhões em receita gerados pela F1 em 2024, 33% vieram de acordos de transmissão, a principal fonte de faturamento. Segundo o The Athletic, cerca de metade desse valor é repassada às equipes como prêmio no campeonato de construtores. Nesse contexto, um contrato mais lucrativo não beneficia apenas os acionistas, mas também os equipes que sustentam o espetáculo.
A ESPN ajudou a reconstruir a audiência da F1 desde que assumiu os direitos nos EUA, após a saída da NBC em 2017. A média subiu de 554 mil espectadores por corrida na estreia para 1,2 milhão em 2022. Em 2025, a tendência é de novo recorde, com 1,4 milhão, apesar da estagnação na temporada passada.
Cue afirmou recentemente ao podcast The Town que a Apple TV tem “significativamente mais” do que os 40 a 45 milhões de assinantes estimados em relatórios recentes. Ainda assim, a distância para a ESPN é abissal. Segundo a Nielsen, 60 milhões de lares americanos ainda acessam a ESPN via cabo — número que já foi de 100 milhões em 2013. A ESPN+ soma 24,9 milhões de assinantes.
No relatório de audiência da Nielsen do mês de setembro nos EUA, a Apple TV segue estacionada na categoria “Outros”, com 0,35% de share, três décimos atrás da Samsung TV.
Na semana passada, a Apple anunciou um pacote conjunto com o Peacock. Ambas eram classificadas como plataformas de subescala e, até então, resistiam a acordos de empacotamento fora do ambiente de telecomunicações.
Cue chamou o timing do pacote e do contrato com a F1 de coincidência, mas o movimento sugere que a Apple possa estar está revisando sua estratégia de conteúdo para esportes. Até então, as parcerias estavam limitadas a um acordo com a Major League Soccer (MLS) e os jogos da Major League Baseball (MLB) de sexta-feira à noite
O analista Angelo Zino, da CFRA Research, afirmou ao Hollywood Reporter que o acordo “reflete a abordagem estratégica da Apple para esportes ao vivo, com foco em direitos exclusivos que garantem controle total da experiência do usuário, e não no volume de contratos.”
Mas o perfil TV Grim Reaper ofereceu a leitura mais provocativa: a Apple parece ganhar acordos de direitos esportivos apenas como último recurso. Por que isso acontece?
A equação que precisa ser provada
No papel, o acordo entre Apple e F1 parece imbatível: um esporte em expansão aliado a uma empresa trilionária. Mas, como lembra Andrew Marchand, do The Athletic, essa conta ainda não foi provada. A F1 agora entra na mesma rota de experimentação que a big tech já percorreu com a MLB e a MLS. E os resultados estão longe de ser claros.
Com a MLB, a Apple investiu US$ 85 milhões anuais por jogos exclusivos às sextas-feiras, um acordo pensado para compensar perdas com a ESPN. No caso da MLS, o contrato global de US$ 250 milhões por temporada em uma década parecia um salto ousado rumo ao futuro do streaming esportivo.
Três anos depois do início do acordo, a liga de futebol finalmente começou a liberar dados (escassos) de audiência que mostram o tamanho do desafio.
Há dez dias, a MLS informou que teve uma média de 3,7 milhões de “espectadores brutos de partidas ao vivo por semana” em plataformas de streaming e lineares em um fim de semana típico com 12 a 15 jogos. Um relatório de Austin Karp, do Sports Business Journal, trouxe mais contexto para a informação.
Esse dado não reflete audiência individual por partida, mas o total agregado de público global. Ainda assim, a liga comemora um aumento de 29% em relação ao ano anterior.
“O ditado que eu gosto de usar é este: os números são tão bons que nem a Apple, nem a MLB nem a MLS estão dispostas a compartilhar”, ironizou Marchand.
A mística do paywall é derrubada
A partir de 2026, a Apple TV exibirá todo o fim de semana de corrida da F1: treinos, classificatórias e os Grandes Prêmios. Parte do conteúdo, como algumas corridas e todas as sessões de treino, será gratuito dentro do app. O F1 TV Premium continuará disponível nos EUA, mas passará a ser acessado apenas pelo Apple TV, sem custo adicional para assinantes.
Nos últimos dias, a crítica comum apontou que colocar a F1 atrás de outro paywall seria um erro. Afinal, a categoria ainda fica atrás de NASCAR e Indy no público americano. O analista Mike Darcey contrariou esse argumento.
“A F1 sempre esteve atrás de um paywall. ESPN não é barata, TV a cabo básica não é barata, e a Apple, neste caso, será mais barata. Mesmo quando a F1 estava na NBC, o acesso dependia de uma assinatura. TV aberta real é exceção nos EUA.”
O outro ponto colocado por Darcey é ainda mais direto: esportes que não têm pausas naturais, e cujos fãs não toleram interrupções, não se sustentam com publicidade. Eles inevitavelmente migram para modelos pagos.
Foi assim com a F1, que só acreditava na lógica do “grátis” quando o dinheiro do tabaco e o alcance da TV linear sustentavam o show. Isso acabou quando a Sky mostrou a Bernie Ecclestone ( ex-presidente e CEO da F1) quanto valia a exclusividade.
A discussão, portanto, não é sobre pagar ou não, mas contempla alcance. E sim, haverá menos espectadores na Apple do que na ESPN. A diferença é que agora a Apple captará os fãs comprometidos, enquanto os casuais, que assistiam por conveniência, não por interesse, ficarão pelo caminho, aposta Darcey.
As impressões de Wall Street
O Sports Business Journal destacou que o mercado financeiro vê o acordo entre Apple e Fórmula 1 com cautela. Analistas avaliam que o impacto positivo para a F1 deve vir mais no longo prazo do que no imediato.
Benjamin Swinburne, chefe de pesquisa de mídia do Morgan Stanley, manteve recomendação overweight e preço-alvo de US$ 110 para as ações da F1, porém ressaltou que o novo contrato é praticamente estável em valor.
A projeção é de cerca de 1,1 vez o atual acordo com a ESPN, considerando a perda da receita da F1 TV nos EUA, que passa a ser integrado à Apple TV, deixando de operar de forma independente e lucrativa.
Swinburne estima crescimento anual composto de cerca de 3%, com ganhos potenciais na associação com uma marca de alcance global como a Apple e que pode investir mais na promoção do esporte. A abertura dos playoffs da MLS para todos os assinantes do Apple TV+ neste ano reforça esse movimento.
Em entrevista à BNN Bloomberg, Zino disse que “não há risco para a Apple”. Para o analista, mesmo que a audiência da F1 não cresça, “o investimento é mínimo diante do valor de mercado da empresa.” O contrato de US$ 700 milhões é, nas palavras dele, “uma gota no balde” para uma companhia avaliada em quase US$ 4 trilhões.
Desde o anúncio do acordo, as ações da F1 recuaram cerca de 2%, enquanto Apple subiu 6% e Disney 3,4%.
O retorno da Globo e a nova lógica dos direitos esportivos
Em julho, analisei as negociações entre Apple e Fórmula 1 dentro do contexto que chamei de oeste selvagem dos direitos esportivos: o ambiente mais competitivo e imprevisível da história recente.
Na época, já especulava-se que a Apple estava disposta a pagar até US$ 150 milhões por ano para garantir a F1 nos Estados Unidos. No mesmo período, a Globo confirmava seu retorno à categoria, e fez isso com a menor oferta: US$ 8 milhões contra US$ 10 milhões da Band e US$ 13 milhões da Record, segundo a jornalista Julianne Cerasoli.
Como observa Yannick Manuel Ramcke, as decisões sobre direitos de mídia passaram a girar em torno da equação entre visibilidade e retorno comercial. E a escolha da F1 pela Globo reforça essa premissa.
No último dia 14, a Globo apresentou ao mercado publicitário o novo pacote da categoria, descrito como “o maior projeto multiplataforma da história da Fórmula 1 no Brasil.” O plano abrange TV aberta, SporTV, Globoplay, ge.globo e redes sociais, com seis cotas nacionais estimadas em R$ 125 milhões cada.
A emissora exibirá 15 GPs ao vivo na TV aberta, com reprises e compactos das demais etapas. O Esporte Espetacular voltará a mostrar os pódios ao vivo, e o SporTV transmitirá as 24 corridas da temporada, incluindo seis sprints, treinos e classificações, com simulcast completo no Globoplay.
Enquanto a Apple paga caro para integrar a F1 ao seu ecossistema global, a Globo aposta em escala e diversificação para fazer o mesmo produto render dentro de casa.
O ecossistema de atenção
O analista Paul Whitehead sintetiza o que acordo entre Apple e Fórmula 1 representa: o futuro das transmissões esportivas não está mais no evento ao vivo, mas no ecossistema de atenção que se constrói em torno dele durante todo o ano. E poucos esportes têm tanto potencial para expandir narrativas culturais e de estilo de vida fora da pista quanto a F1.
Aqui há um ponto em comum entre a estratégia multiplataforma da Globo e o modelo do jardim murado da Apple: elas tratam o conteúdo como um sistema integrado, não como um produto isolado.
A Globo anunciou que fará cobertura diária da F1, com mais de 100 matérias em programas da emissora e 176 no SporTV, abrangendo desde o Jornal Nacional até o Tá na Área. O ge.globo e o Globoplay terão conteúdo sob demanda, experiências interativas e trilhas de mídia segmentadas. Podcasts como o Braincast e o ROS Podcast produzirão episódios dedicados à categoria. Nas redes sociais, a emissora prevê mais de 100 ativações e 20 milhões de interações ao longo da temporada.
No caso da Apple, Whitehead define o projeto como uma parceria de marketing disfarçada de acordo de direitos, um modelo próximo ao da MLS, mas em escala maior. O objetivo é conectar cada vertical do ecossistema da Apple à F1:
- Apple Music – playlists de pilotos e colaborações com artistas
- Apple Maps – circuitos em 3D e rotas de viagem para os GPs
- Apple News – explicações imersivas e alertas personalizados
- Apple Vision Pro – replays de cockpit e sobreposições de telemetria
- Apple Fitness – treinos inspirados nos pilotos
- Apple Sports App e Wallet – dados em tempo real e programas de fidelidade
Tanto Globo quanto Apple enxergam a transformação do consumo esportivo em um sistema de engajamento contínuo, no qual audiência, conteúdo, dados e comércio coexistem no mesmo ambiente. ( tema que tenho falado sobre isso [maddisonbr.substack.com] com frequência)
O colapso da velha lógica de valor
Durante o Sportel Mônaco 2025, principal encontro global da indústria de mídia esportiva e tecnologia realizado na semana passada, Carlo De Marchis lançou uma pergunta a Murray Barnett: como ganhar dinheiro com esportes em 2026?
Barnett, especialista em direitos esportivos, diz que em um cenário de atenção fragmentada, distribuição algorítmica e substitutos infinitos, só há valor quando geração de demanda e monetização caminham juntas.
Nas palavras de De Marchis, quem não é uma propriedade de primeira linha precisa tratar cada ponto de contato com o fã como parte da máquina de receita.
Essa lógica explica por que plataformas de tecnologia deixaram de ser apenas hospedeiras de conteúdo para operar como empresas de mídia.
“Os esportes ao vivo, outrora o último bastião da televisão linear, estão sendo reescritos pelas mesmas empresas que redefiniram música, mapas e mensagens”, concluiu o analista.
E a Apple quer entrar definitivamente neste novo jogo de poder.

