O jovem que morreu após invadir o recinto dos felinos no Parque Zoobotânico Arruda Câmara (Bica), em João Pessoa (PB), tinha histórico de transtornos psiquiátricos e foi o único de cinco irmãos que não foi adotado. Conhecido como Vaqueirinho, Gerson de Melo Machado, de 19 anos, dizia sonhar em cuidar de leões na África.
Diagnosticado com esquizofrenia — mesma condição da mãe e da avó —, Gerson tinha o desenvolvimento cognitivo comparado por autoridades prisionais ao de uma “criança de 5 anos” e vivia em situação de rua. A conselheira tutelar Verônica Oliveira, que o acompanhou por oito anos, descreveu o cenário de luta constante nas redes sociais.
“Eu conheci a criança destituída do poder familiar da mãe, impedido de ser adotado como os outros quatro irmãos. Você só queria voltar a ser filho da sua mãe, que é esquizofrênica e não tinha condições de cuidado. Sua avó, também com transtornos mentais. Mas a sociedade, sem conhecer sua história, preferiu te jogar na jaula dos leões”, escreveu Verônica.
A condição mental vulnerável alimentava um sonho antigo e perigoso de domar felinos. Verônica relatou que Gerson expressava frequentemente o desejo de viajar para a África. Em um episódio anterior, ele chegou a cortar a cerca de um aeroporto e entrar no trem de pouso de uma aeronave, sendo interceptado pelas câmeras antes da decolagem.
“Gerson, meu menino sem juízo… Quantas vezes, na sala do Conselho Tutelar, você dizia que ia pegar um avião para ir a um safári na África cuidar de leões. Você ainda tentou. E eu agradeci a Deus quando o aeroporto me avisou que você tinha cortado a cerca… Graças a Deus, observaram pelas câmeras antes que uma tragédia acontecesse”, disse na publicação.
A luta por tratamento e ‘problema comportamental’
Em um vídeo divulgado nas redes sociais após a morte de Gerson, a conselheira afirmou que o jovem não recebeu o tratamento adequado. Segundo ela, apesar dos laudos visíveis de transtorno mental, o Estado muitas vezes rotulava o caso apenas como “problema comportamental” durante seus acolhimentos institucionais. Ela conta que foram dez anos “brigando para garantir seus direitos”.
— Os psiquiatras insistiam em dizer que era só um menino que não se adequava ao espaço porque tinha problema comportamental. O Conselho Tutelar de Mangabeira não vai se calar. Nós lutamos muito tentando garantir os direitos de Gerson. O meu sentimento hoje é de revolta — afirmou.
A diretora do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Caminhar, Janaina D’Emery, confirmou que Gerson possuía diagnóstico de esquizofrenia e era acompanhado desde a infância, primeiro no Caps infantil e depois no serviço adulto. Ela informou que o jovem tinha “muita dificuldade de aderir ao tratamento” devido à falta de uma rede de apoio familiar. Gerson esteve no Caps na quinta-feira anterior à sua morte, mas não retornou no dia seguinte.
— A gente entende que o Gerson, por faltar essa rede de apoio, dificultava o seu tratamento. Então, não tinha adesão. […] ele participou aqui em dezembro, depois desapareceu. […] retornou em junho e depois desapareceu de novo. Quando nós fomos buscar informações, ele estava em um hospital psiquiátrico em Recife. Ele chegou semana passada e veio direto ao serviço, onde o acolhemos novamente e ofertamos o tratamento para continuidade. Infelizmente, esse fato aconteceu no domingo. Último dia em que ele esteve aqui foi na quinta-feira. Na sexta, ele já não compareceu mais — destacou Janaína, em um vídeo enviado ao GLOBO.
Passagens pela polícia e ‘prisão institucionalizada’
Apesar da condição psíquica, Gerson acumulou um extenso histórico policial. Segundo Edmilson Alves, o Selva, diretor da Penitenciária Desembargador Flósculo da Nóbrega, o jovem tinha 16 passagens pela polícia — dez como menor e seis como maior —, geralmente por crimes de dano e furto.
Dias antes do incidente no zoológico, no dia 24, Gerson foi detido duas vezes em apenas uma hora: primeiro por danificar um caixa eletrônico e, em seguida, por arremessar uma pedra contra uma viatura policial propositalmente. Segundo o diretor do presídio, o jovem afirmava preferir a prisão a ficar nas ruas, se tornando um “preso institucionalizado”.
— Na semana passada, a gente falou tanto de Vaqueirinho. Fiz um vídeo falando da situação da cabeça dele, do que a gente tinha passado no presídio e que ele era uma pessoa que precisava de ajuda, precisava de tratamento. O local dele também não era o presídio, e a Justiça decidiu para ele ir para o Caps. O Caps não segura, ele fugiu — disse. — Ele não conheceu outra vida senão a prisão. A gente chama de preso institucionalizado.
O diretor e o chefe de disciplina da unidade, Ivison Lira, haviam alertado publicamente sobre a situação de Gerson dias antes da morte, classificando o caso como uma “tragédia anunciada”. Para Ivison, o raciocínio de Vaqueirinho equiparava-se ao de “uma criança de 5 anos”.
— A gente sabia que era uma tragédia anunciada. Vaqueirinho sem o devido tratamento, sem acompanhamento, numa rua. Tá aí o resultado. Infelizmente, a gente via que o raciocínio dele era de uma criança de 5 anos. Não processava tanto. Tudo era condicionado à troca, a bombons, algo do tipo, para poder ele não se rebelar. Mas era fácil de lidar com ele desse tipo. Precisava de uma atenção maior — lamentou Ivison.

