Manaus (AM) – No início do mês de fevereiro deste ano, devido à crise sanitária vivida pelos Yanomami, o Governo Federal assinou uma portaria que restringe o acesso e proíbe o proselitismo religioso nas Terras Indígenas. A situação retomou um debate antigo sobre o etnocídio nas populações tradicionais, promovido pela presença cristã, que por sua vez, defendem a atuação nessas regiões como liberdade de expressão religiosa.
Conforme a portaria da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e da Secretária de Saúde Indígena (SESAI) “é terminantemente proibido o exercício de quaisquer atividades religiosas junto aos povos indígenas, bem como o uso de roupas com imagens ou expressões religiosas”.
O proselitismo religioso é a denominação dado a grupos religiosos que buscam converter novos fiéis por meio da imposição de suas doutrinas sobre outros indivíduos.
De acordo com João Paulo Tukano, doutor em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), a religião é um instrumento do Estado para impor a cultura ocidental de pensar e de ser. E entre as primeiras ações realizadas pelos seguidores dessas doutrinas dentro das comunidades indígenas, está a de demonizar e criminalizar as práticas de conhecimentos tradicionais.
“Ela (proselitismo religioso) não permite e nem promove o diálogo entre modelos de conhecimentos diferentes. Isto é, a religião é um modelo de conhecimento ocidental, de se relacionar com o criador – criatura. E o modelo indígena é outro tipo de relacionamento, com as coisas, com os demiurgos, entre outros”, explica o antropólogo.
“Nesse sentido, na medida que ela começa a criminalizar e demonizar, ela não permite que os indígenas expressem seus conhecimentos, que são também fundamentais para a existência deles. Ela é uma ferramenta para de fato acabar com os conhecimentos indígenas com a imposição cultural”, completa.
Ainda em fevereiro deste ano, o deputado Milton Vieira (Republicanos-SP) entrou com um Projeto de Decreto Legislativo para revogar a portaria da FUNAI e SESAI, alegando que a portaria “além de violar dispositivos da Constituição, que preceituam liberdade de religião ou de crença, também afronta a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948”.
Mas para João Paulo Tukano na medida que as ações religiosas não permitem e nem admitem um diálogo, apenas impõem, criminalizam e demonizam a outra cultura, não se tem uma expressão de liberdade religiosa, mas sim uma expressão de imposição cultural.
“Existe uma imposição cultural com desestruturação dos povos indígenas, de seus pensamentos, das suas práticas e das suas instituições de ensino, parentesco, casamentos que são instituições propriamente indígenas, que operam com outros modelos de concepções e práticas”, comenta.
O antropólogo ainda ressalta que a partir do momento que as ações do proselitismo religioso entram nas comunidades ou aldeias, elas impõem um modelo ocidental de religião, desprezando as práticas indígenas, modificando a estrutura social desses povos, como as concepções deles com o território, os costumes, a saúde e a língua nativa.
A língua nativa
Em relação aos idiomas indígenas, ele explica que a língua é um recorte da expressão de conhecimento, portanto, quando se impõe, por exemplo, o uso do português, estão impondo os pensamentos e a lógica de relações ocidental, resultando em apagamento cultural.
Como exemplo, o antropólogo utiliza o município de São Gabriel da Cachoeira (distante a 852 quilômetros de Manaus) – o mais indígena do Brasil -, onde no passado as populações tradicionais passaram pelo processo de aculturação e durante a catequização foram proibidos de expressar suas crenças e línguas.
“Ela (proselitismo religioso) modificou bastante na região de São Gabriel. Por exemplo, não temos mais as práticas de nossas festas, que é relacionada ao calendário cosmológico de cada período, estação e constelação para conectar com os seres que habitam no outro domínio, que nós chamamos de Wai-Mahsã”, explica o antropólogo ao se referir a crença do povo Tukano.
Outro conceito modificado com a imposição cultural cristã, é a prática do cuidado da saúde e cura indígena, que segundo João Paulo Tukano, muitas foram perdidas e como consequência surgiram as doenças, suicídios e assassinatos.
Atualmente, São Gabriel da Cachoeira é composto por áreas urbanas, comunidades e aldeias espalhadas pelo território, onde a população vive de uma relação de “troca cultural” com a do ocidental e a preservação do tradicional, na qual, cocares e pinturas corporais se compõem às roupas não-indígenas ou entre os diálogos que, por exemplo, se misturam entre o português e as faladas pela população nativa.
“Precisamos dialogar, ou seja, essa ciência, esse conhecimento ocidental que nos é imposto ou a religião, que é levada para nossas comunidades, ela tem que respeitar nossa cultura, nosso modelo de conhecimento, nossas relações, nossas instituições e nossos especialistas. Se não respeitar, não tem diálogo”, ressalta João Paulo Tukano.
Impactos da catequização
Em conversa com o Vanguarda do Norte, o ativista indígena Kuenã, do povo Tikuna e Tariano, relata sobre os impactos causados pelo proselitismo religioso nos costumes e tradições culturais do povo Magü’ta, conhecido como Tikuna.
“Meu povo, que é do Rio Alto Solimões, vem sofrendo uma invasão de uma seita ultraconservadora conhecida por ‘A Ordem da Santa Cruz’ ou ‘Irmandade da Santa Cruz’, fundada por José Francisco da Cruz, que chegou no nosso território em 1972”, relata Kuenã.
Segundo o ativista, na região, José Francisco da Cruz convocou pessoas humildes e vulneráveis como indígenas e ribeirinhos, conquistando parte dessas populações.
O religioso faleceu em 1982, no entanto, no ano de 1990 outro religioso, chamado Francisco da Silva Cruz, que saiu do Peru, chegou naquela região alegando ser José Francisco da Cruz, afirmando que não estaria morto e teria ressuscitado.
“Com sua pregação enganosa ele (Francisco da Silva Cruz) conquistou fiéis por meio da alienação e demonizações sobre culturas indígenas, especialmente sobre nossos costumes, tradições e rituais. Com essa interferência os indígenas tiveram bastante impacto culturais, o que gerou conflito de identidades e estão entre as maiores taxas de suicídio no Brasil”, explica Kuenã.
Kuenã relata também que o ritual da “moça nova”, de iniciação feminina, foi proibido, perseguido e condenado pelo líder da seita que taxava a cultura Tikuna como diabólica. Começando, assim, a desprezar os pajés, que, segundo o ativista, são figuras importantes para o equilibro físico e espiritual do povo Magü’ta.
“Foi assim que a seita feriu o que é mais sagrado para o povo Magü’ta, a nossa espiritualidade. Além disso, começaram a se apropriar de nossos territórios afirmando que ‘não há necessidade de defendê-lo’, alegando que ‘o que importa é salvar a alma'”, finaliza.
Missionários evangélicos e povos indígenas isolados
Além do histórico das atuações da Igreja Católica na catequização das populações indígenas, outros grupos religiosos, como os missionários protestantes, vêm ganhando força de atuações nos últimos anos com a missão de evangelizar, principalmente povos originários isolados.
Um dos grupos protestantes de maior destaque é a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), estabelecida em 1943 e tem a principal sede nos Estados Unidos. O grupo atua em diversas partes do mundo e seus fundadores declaram que “com determinação inabalável, nós arriscamos as nossas vidas e apostamos tudo em Cristo até que nós tenhamos alcançados a última tribo, independente de onde essa tribo possa estar”.
No ano de 1970 e 1980, o grupo ajudou a organizar uma espécie de ‘caçadas humanas’ no Paraguai de indígenas Ayoreo, que eram capturados e levados à força para fora das florestas, na qual muitos dos nativos acabaram morrendo.
Em 2020, o então presidente Jair Bolsonaro nomeou um missionário evangélico ligado à MNTB, Ricardo Lopes Dias, para chefiar a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da FUNAI.
A MNTB, atualmente chamada de “Ethanos360”, é um dos grupos missionários evangélicos fundamentalistas mais extremos, tem como um dos objetivos forçar o contato e evangelizar povos indígenas isolados.