Comunicadores indígenas debateram hoje (27), no Acampamento Terra Livre, em Brasília, a importância dos povos indígenas terem se apropriado de tecnologias modernas de informação e ocupado a rede mundial de computadores para divulgar e chamar a atenção a causas como a demarcação de seus territórios e a preservação de modos de vida tradicionais.
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Principalmente entre os jovens, habituados ao alcance e à instantaneidade das mídias sociais, parece não haver dúvidas quanto à centralidade estratégica da comunicação no fortalecimento do movimento indígena. Para eles, o trabalho de divulgação que realizam com um simples celular com acesso à internet ajuda os povos indígenas a se contraporem a narrativas que tendem a alimentar preconceitos e distorções históricas.
“As narrativas indígenas têm que ser protagonizadas por nós. Porque nada é por nós, sem nós”, disse Samela Sateré Mawé, representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e mediadora do debate A importância da comunicação e tecnologia indígena na decolonização, denúncia e luta.
“Grandes veículos de mídia e de comunicação e até mesmo as escolas não falam por nós. Simplesmente porque não sabem falar sobre nossos povos, nossas línguas, nossa cultura e sobre nossas identidades da forma como nós mesmos falamos”, acrescentou ela.
O debate é parte da programação da 19ª edição do Acampamento Terra Livre, que é uma assembleia do movimento indígena que ocorre anualmente, desde 2004, na capital federal. Neste ano, o evento deve atrair mais de 5 mil participantes de todo o país.
Ferramenta para denúncia
A plenária reuniu comunicadores de diferentes etnias e regiões do país. Em comum, todos mencionaram a importância do movimento utilizar as mídias sociais como “ferramenta de luta” para denunciar violações e divulgar a cultura e os valores dos povos indígenas.
“Para mim, a comunicação indígena deve mostrar a luta e toda a violência que nossos povos sofrem em nossos territórios tradicionais e nas áreas de retomadas [terras reivindicadas em disputa]. Levar [ao conhecimento do] mundo tudo o que sofremos diariamente, os desafios que enfrentamos”, sustentou a jovem Sally Nhandevas, moradora da aldeia Porto Lindo, de Japorã (MS).
“Acredito que buscamos desconstruir uma narrativa, substituindo-a pela possibilidade de contarmos, nós mesmos, nossa história. Neste sentido, não basta falarmos de problemas importantes sobre os quais devemos e precisamos falar, como as questões [políticas] que envolvem as terras indígenas. Também devemos valorizar nossa cultura. É como diz o Emicida na música Amarelo: ‘permita que eu fale/ Não as minhas cicatrizes / Se isso é sobre vivência/ Me resumir a sobrevivência / É roubar o pouco de bom que vivi'”, acrescentou Ricardo Terena, membro da comunicação da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste.
Ao destacar a evolução da comunicação indígena ao longo das últimas décadas, o representante da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo Alexandre Pankararu contou que ficava incomodado com a forma como os indígenas costumam ser retratados. Esse incômodo o levou a trabalhar para tentar mudar a visão de não-indígenas, numa época em que a internet ainda ensaiava os primeiros passos no Brasil.
“Até então, a comunicação tradicional – ou melhor, o jornalismo, porque não dá para dizer que aquilo era uma comunicação, pois nós nunca eramos ouvidos –, as grandes redes tinham suas próprias opiniões sobre nós. As pessoas nos tratavam como algo folclórico, o que nos incomodava muito. Isso nos fez compreender a importância da comunicação para que pudéssemos transmitir, nós mesmos, as nossas vozes, os nossos conhecimentos e nossa realidade”, detalhou Alexandre que também é produtor cultural.
Para ele, a possibilidade de qualquer pessoa com acesso à internet gravar e divulgar imagens em tempo real, contribuiu para dar mais segurança às comunidades indígenas: “As pessoas pensam duas vezes antes de atacar uma comunidade, se sabem que lá vai ter um indígena com um celular na mão para filmar [os fatos].”
Coordenador da Rede de Jovens Comunicadores da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o paraense Mitã Xipaya, de Altamira (PA), ponderou que a comunicação indígena ganhou ainda mais relevância por conta da pandemia da covid-19, quando o necessário isolamento social obrigou as comunidades a buscarem formas de se manter informadas sobre o que acontecia para além de seus territórios.
Segundo Mitã, a própria rede de jovens comunicadores surgiu neste contexto para “informar e, sobretudo, combater as fakenews”:
“Conseguimos promover as campanhas de vacinação e conscientizar os parentes por meio da rede de jovens comunicadores indígenas. Esta estratégia deu tão certo que a Coiab decidiu dar continuidade ao projeto”
O paraense apontou os principais desafios que os comunicadores indígenas ainda enfrentam: a dificuldade de obter equipamentos de qualidade para aprimorar seu trabalho e, principalmente, a qualidade da conexão à internet.
“Principalmente na Amazônia, os jovens que estão nas aldeias, vivenciando o dia a dia de suas comunidades, contam com uma rede que dificulta a conexão. Até mesmo nas aldeias onde há sinal, a qualidade muitas vezes é ruim.”