As mudanças climáticas têm outros riscos além dos impactos em nosso estilo de vida. Com o derretimento da “permafrost”, terreno que tenha permanecido congelado durante, pelo menos, dois anos, vírus e bactérias perigosas podem ressurgir.
Atualmente, o planeta já está 1,2º C mais quente do que era no período pré-industrial. Os cientistas preveem que o Ártico poderá ficar sem gelo no verão já na próxima década (2030-2050), bem antes do previsto. Uma das principais preocupações com a nova fase, é a liberação de gases gases de efeito estufa presos, como o metano, na atmosfera à medida que o permafrost da região derrete. Porém, a menos estudada são os patógenos dormentes, os vírus “zumbis”.
Esta é a área de estudo do virologista francês Jean-Michel Claverie. Com 73 anos de idade, Claverie passou mais de uma década estudando vírus “gigantes”, incluindo alguns com quase 50 mil anos, encontrados nas camadas profundas do permafrost siberiano.
No ano passado, a equipe dele publicou pesquisas sobre esses mesmos vírus antigos extraídos. Apesar da “idade”, todos permaneceram infecciosos. Em entrevista ao jornal Japan Times, o virologista explica que “estamos acostumados a pensar nos perigos vindos do sul”, em referência às doenças transmitidas por regiões tropicais, mas que isto muda o quadro.
“Agora, percebemos que pode haver algum perigo vindo do norte, à medida que o permafrost descongela e libera micróbios, bactérias e vírus”, disse.
Claverie mostrou pela primeira vez que vírus “vivos” podem ser extraídos do permafrost siberiano e revividos com sucesso em 2014. Para evitar qualquer tipo de contaminação humana, a pesquisa ficou concentrada apenas em vírus capazes de infectar amebas.
A partir daí, ele sentiu que a escala da ameaça à saúde pública indicada pelos resultados havia sido subestimada ou considerada erroneamente uma raridade. Com isso em mente, em 2019, a equipe isolou 13 novos vírus, incluindo um congelado sob um lago há mais de 48.500 anos, de sete diferentes amostras antigas de permafrost siberiano —evidência de sua ubiquidade.
Os resultados foram publicados no ano passado, enfatizando que uma infecção viral de um patógeno desconhecido e antigo em humanos, animais ou plantas poderia ter efeitos potencialmente “desastrosos”.
Um exemplo deste tipo de ameaça que ainda está surgindo, é um caso que aconteceu em 2016, na Sibéria. Uma onda de calor ativou esporos de antraz, causando dezenas de infecções e a morte de uma criança e milhares de renas.
“Voltar 50 mil anos no tempo nos leva ao desaparecimento dos neandertais da região”, diz ele. “Se os neandertais morreram de uma doença viral desconhecida e esse vírus ressurgir, poderia representar um perigo para nós.”
Como sobrevivem?
Em julho deste ano, uma pesquisa de uma outra equipe de cientistas revelou que esses organismos multicelulares podem sobreviver às condições de congelamento ficando em um estado metabólico inativo chamado “criptobiose”. Essa mesma equipe conseguiu reanimar uma lombriga de 46 mil anos, que estava congelada no permafrost siberiano, apenas hidratando-a.
“É fundamental do ponto de vista de que podemos interromper a vida e depois reiniciá-la”, conta Teymuras Kurzchalia, professor emérito do Instituto Max Planck de Biologia Celular e Genética Molecular, que esteve envolvido no estudo. “Isso significa que é inato para alguns organismos vivos diminuir ou suspender de alguma forma os processos metabólicos”.
O permafrost, solo que um dia já esteve repleto de vida animal, oferece condições perfeitas para preservar matéria orgânica: é natural, escuro, sem oxigênio e permite pouca atividade química.
Na Sibéria, pode atingir até um quilômetro de profundidade, o único lugar do mundo onde o permafrost vai tão fundo, e cobre cerca de dois terços do território russo. Em apenas um grama é possível encontrar milhares de espécies de micróbios dormentes, de acordo com um artigo publicado na revista Nature em 2021.
Medo do desconhecido
Durante anos, as agências de saúde globais e governos têm monitorado possíveis doenças infecciosas desconhecidas que os humanos não teriam imunidade, nem tratamento apropriado.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) adicionou, em 2017, uma “Doença X” genérica a uma lista restrita de patógenos considerados de alta prioridade para pesquisa e para desenvolvimento de um plano de ação para prevenção ou contenção em caso de pandemia. Após a pandemia da Covid-19, que parou o mundo, os esforços apenas se intensificaram.
“A OMS trabalha com mais de 300 cientistas para analisar as evidências de todas as famílias de vírus e bactérias que podem causar epidemias e pandemias, incluindo aquelas que podem ser liberadas com o descongelamento do permafrost”, explica a porta-voz da OMS, Margaret Harris.
Mudanças climáticas
Por 400 mil anos, as camadas subjacentes de permafrost têm sido estáveis. Um exemplo, é o surgimento das cidades no local, contudo, com as mudanças climáticas isso está mudando. Crateras têm surgido na região e até algumas cidades estão se afundando.
A questão geopolítica também tem sido um fator de atraso para os estudos. Organizar viagens à Sibéria e colaborar com os laboratórios russos já era um desafio antes do início da guerra do país contra a Ucrânia. Mas agora, as comunicações com ex-colegas e colaboradores do país praticamente pararam.
O laboratório de Claverie, assim como muitos outros no mundo ocidental, é financiado pelo governo. “Nos disseram para não falar mais com os russos”, diz ele.
Os efeitos do aquecimento global na Sibéria representam tanto riscos quanto recompensas para a economia russa. Estima-se que o degelo do permafrost esteja colocando em risco cerca de US$ 250 bilhões em infraestrutura e já acredita-se ter contribuído para desastres ambientais, como o derramamento de petróleo de Norilsk em 2020, à medida que o solo se torna instável.
Porém, nem tudo é problema. A região também possui uma riqueza de recursos naturais como carvão, gás natural, ouro, diamante e minério de ferro. Ao contrário de outras regiões cobertas de permafrost, como Alasca e Groenlândia, Claverie diz que a Rússia tem sido mais ativa na mineração desses solos: “Eles estão cavando buracos por toda parte”.
Alguns cientistas também temem que a tecnologia, como a usina nuclear flutuante da Rússia, a Akademik Lomonosov, possa transformar áreas anteriormente inacessíveis ao longo da costa da Sibéria em centros de mineração, à medida que rotas livres de gelo através do Círculo Ártico aumentam a acessibilidade.
“A mineração nessas grandes profundidades, além da camada ativa que descongela a cada verão, aumentaria a possibilidade de interação humana com um patógeno antigo potencialmente prejudicial”, explica Claverie.
Isso destaca o dilema intrínseco à pesquisa também, que é caçar a próxima grande ameaça à humanidade e inadvertidamente acabar propagando o perigo. O potencial de contaminação cruzada durante expedições de amostragem é alto. Assim, alguns pesquisadores do meio estão começando a defender abordagens menos proativas e ávidas por recursos.
“Seria bom estabelecer uma maneira especializada de acompanhar a população inuíte, por exemplo, para ver que tipo de doenças eles contraem”, diz Claverie. “E se algo estiver vindo do permafrost, seremos capazes de capturá-lo muito mais rapidamente.”
Outras organizações também estão atentas para este risco. No início deste mês, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional abandonou seu projeto de US$ 125 milhões para caçar vírus no sudeste Asiático, África e América Latina que poderiam potencialmente infectar humanos. O motivo são as preocupações de que a própria pesquisa possa desencadear uma pandemia.
Enquanto isso, Claverie diz que não voltará à Sibéria, independentemente do resultado da guerra. Ele explica que já deixou claro que o perigo existe e que expedições para descobrir mais segredos enterrados nessas profundezas congeladas seriam uma loucura.
“Quanto mais velho você fica, melhor você se torna em filosofia”, diz ele. “Talvez seja melhor deixar essas coisas em paz.”
*Com informações Terra