Enquanto se discute na Câmara projeto que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação a homicídio simples, a Justiça vem demorando a conceder o direito a esse procedimento em casos que nem deveriam ser questionados, fazendo com que mulheres levem a gravidez para além do tempo considerado seguro para a interrupção.
Caso da paraense Benita*, 26 anos, que engravidou após ser vítima de stealthing — quando o homem tira a camisinha sem o consentimento da parceira. Apesar de o crime ser tratado como violência sexual mediante fraude (artigo 215 do Código Penal Brasileiro), seu pedido de aborto foi negado, e recorreu. Com 20 semanas de gestação, ela espera hoje decisão da justiça para conseguir seu direito de interromper a gravidez. A demora já a fez pensar em tirar a própria vida.
Mãe de uma criança de 9 anos e outra de apenas 1 ano, a comerciante detalha ter conhecido o genitor em uma boate. No motel, ela foi clara quanto ao uso da camisinha. O homem concordou, mas ao término do ato, ela descobriu que ele não estava usando proteção.
“Falou que não conseguiria gozar sem camisinha, e tirou. Fiquei com raiva, brigamos, fui embora e só queria esquecer aquele dia”, lembra a comerciante.
Benita só descobriu a gravidez na 13ª semana. No desespero, tomou dois chás considerados abortivos, passando tão mal que achou que morreria:
Não fui ao médico porque iriam querer que eu ficasse internada, que eu fizesse o pré-natal, e eu não quero me sentir apegada a essa criança. E ninguém sabe da minha situação. Estou sozinha nessa”.
Após conhecer a história de duas mulheres que conseguiram realizar a interrupção da gravidez por estupro, ela procurou a maternidade onde essas vítimas foram atendidas, e recebeu a orientação de fazer um boletim de ocorrência. Só assim, a enfermeira lhe disse, faria o procedimento — o que não está previsto em lei.
Na Delegacia da Mulher, porém, Benita ouviu da própria delegada que sua história era “estranha” e que seria presa caso estivesse mentindo: “Pensei que seria acolhida e saí me sentindo errada. Aí desisti de prestar queixa.”
Benita procurou o Ministério Público, que entrou com uma ação na Justiça reivindicando o direito ao aborto por violação sexual mediante fraude. O pedido foi negado, e ela está recorrendo:
“Já estou com 20 semanas. Olha como a Justiça daqui é muito falha. Estou mantendo as aparências para ninguém desconfiar, mas quando cai a noite, eu chego do trabalho e bate aquela tristeza e pensamentos ruins. Não sei nem o que vou fazer caso precise ter essa criança, mas entendo que a mulher tem que ter o direito sobre o próprio corpo. A opinião de terceiros não tem que definir a vida da pessoa”.
O Milhas Pela Vida das Mulheres, instituição que atua pelo direito das meninas e mulheres, está em campanha de arrecadação de recursos para garantir à vítima um plano B, em caso de procrastinação ou indeferimento pela Justiça.
“Se formos obrigadas, a faremos voar até uma cidade que tenha um serviço de saúde público que garanta o seu direito. E se isso se tornar um problema, a viagem dela a um país vizinho onde o aborto já é legalizado está igualmente garantida”, afirma a cineasta Juliana Reis, responsável pelo Milhas.
“Não permitiremos aos fundamentalistas forçarem Benita a parir o fruto de um estuprador. E faremos isso com a lei brasileira do nosso lado”.
“Acredito no perdão, não no julgamento”
A Justiça também demorou para atuar no caso de Nicole*, e ela só conseguiu interromper a gravidez na 24 semana. O feto tinha uma condição incompatível com a vida.
Mesmo usando contraceptivo com o namorado, a paraibana descobriu a gravidez com 16 semanas e, logo na primeira ultrassonografia, o feto foi diagnosticado com a síndrome de Body-Stalk, que impede o desenvolvimento completo. O feto tinha órgãos vitais expostos e membros atrofiados.
“Cada ultrassom era doloroso, porque havia uma esperança de que um milagre pudesse acontecer, mas ele só piorava”, ela detalha.
Antes contrária ao aborto, por ter nascido num lar cristão, ela escolheu reivindicar na Justiça seu direito de interromper a gestação, inclusive por indicação da própria equipe médica que a atendeu. Apesar de não ser claro na lei, há muitos pareceres favoráveis a mulheres que comprovam que o feto não sobreviverá após o parto.
“As pessoas são pró-vida, mas a de quem? Não é vida uma criança passar por todo esse sofrimento dentro da barriga da mãe e ainda ficar definhando no hospital”.
Como a autorização só veio quando Nicole já estava com 24 semanas, ela precisou induzir o parto:
“Quando começou essa discussão [PL 1904/24], a primeira coisa que eu pensei foi que seria presa. Mas acredito no perdão e na compaixão divina, não no julgamento. Não é uma decisão tomada de forma leviana, mas sim um ato de compaixão diante do sofrimento inevitável. As pessoas precisam compreender que cada situação é única e merece respeito.”
A advogada Isabelle Machado Gayoso quem conseguiu a autorização para Nicole abortar, e defende a criação de um protocolo para evitar que as mulheres precisem expor suas histórias dolorosas na Justiça.
“Como o estado pode exigir que as pessoas corram riscos e sofram se ele não dá a elas o devido suporte emocional e médico? Como o estado pode obrigar uma pessoa a correr risco de vida, prosseguindo com uma gestação que não vai resultar no fruto? Ele não garante nem um sistema que evite que pais violem seus filhos, e quer impedir alguém escolher interromper a gestação”, conclui.
*nomes fictícios para preservação da identidade das entrevistadas.