Mais de 100 organizações humanitárias, entre elas Save the Children, Oxfam e Médicos sem Fronteiras, publicaram um comunicado conjunto em que denunciam o que classificam como “fome generalizada” em Gaza.
“Enquanto a fome generalizada se espalha por Gaza, os corpos de nossos colegas e daqueles a quem servimos estão sendo consumidos”, afirma o documento.
“A cada manhã, a mesma pergunta ecoa em Gaza: ‘Será que vou comer hoje?’.”
Um trabalhador humanitário, que presta apoio psicossocial no território, falou do impacto devastador sobre as crianças.
“Elas dizem aos pais que querem ir para o céu, porque ao menos lá tem comida”, destacam as agências.
A ONU declarou na terça-feira (22/07) que as forças israelenses mataram mais de 1.000 palestinos que tentavam obter ajuda alimentar desde que uma entidade controversa, respaldada pelos Estados Unidos e Israel, a Fundação Humanitária de Gaza, iniciou suas operações no fim de maio, substituindo uma ampla resposta humanitária coordenada pela ONU.
Israel enfrenta uma crescente pressão internacional diante da catastrófica situação humanitária no território palestino.
Mais de dois milhões de pessoas enfrentam uma grave escassez de alimentos e outros produtos essenciais para a sobrevivência após 21 meses da atual ofensiva de israelense.
‘Tormento físico e psicológico’

“Os palestinos estão presos em um círculo vicioso de esperança e angústia, aguardando assistência e cessar-fogo, apenas para descobrir que as condições estão piorando”, afirma o comunicado.
“Não é apenas um tormento físico, mas também psicológico. A sobrevivência é apresentada como uma mera miragem.”
A carta indica que as distribuições de ajuda permitidas em Gaza “têm uma média de apenas 28 caminhões por dia”.
A ONU já sugeriu anteriormente que seriam necessários ao menos 600 caminhões por dia para alimentar uma população de dois milhões de pessoas.
As agências afirmam que Israel nega acesso a “toneladas” de suprimento e acusam o país de falsas promessas sobre seus planos de aumentar a ajuda “quando não há mudança real acontecendo”.

Na terça-feira, o órgão militar israelense responsável por coordenar as entregas de ajuda, o Cogat, insistiu que Israel atua em conformidade com o direito internacional, e afirmou que facilita a entrada de ajuda, ao mesmo tempo em que garante que ela não chegue ao Hamas.
Nesse mesmo dia, centenas de pessoas em Tel Aviv marcharam até um edifício do Ministério da Defesa com sacolas simbólicas de alimentos para protestar contra a fome em Gaza e pedir um cessar-fogo.
Outros pontos destacados no comunicado das agências humanitária incluem:
- “Enquanto o cerco imposto pelo governo israelense mata de fome a população de Gaza, os trabalhadores humanitários se juntam às filas para receber alimentos, arriscando serem baleados, para alimentar suas famílias”;
- O “cerco total” em Gaza tem “gerado caos, fome e morte”;
- Os suprimentos estão “totalmente esgotados”;
- Armazéns em Gaza com toneladas de alimentos, água e suprimentos médicos permanecem intactos, já que Israel impede as organizações de ter acesso a eles e distribui-los;
- “O sistema humanitário liderado pela ONU não falhou, mas foi impedido de funcionar”, diz a declaração;
- Há “taxas recordes” de desnutrição aguda, especialmente entre crianças e idosos;
- As agências exigem um cessar-fogo permanente, a suspensão de todas as restrições, a reabertura de todas as passagens terrestres, a rejeição dos centros de distribuição controlados por militares e uma resposta humanitária liderada pela ONU.

‘Não há leite em fórmula para bebês com fome’
A Oxfam compartilhou com a BBC Mundo — serviço em espanhol da BBC — o testemunho de um médico em Gaza.
“Nunca imaginamos que existiam países que pudessem declarar guerra contra civis — crianças, mulheres e idosos — e cortar o fornecimento de ajuda humanitária e médica. Nunca imaginamos que, 18 meses depois do início da guerra, a situação poderia piorar tanto a ponto de não encontrarmos um leito de hospital para um paciente com leucemia… nem leite em fórmula para um bebê com fome” declarou.
“Quero contar que, na semana passada, transitei entre o horror das cirurgias e o caos dos feridos, e logo depois de um dia longo no trabalho, descobri que faltava comida nos mercados, não porque não estivávamos com fome, mas porque simplesmente não havia nada”, acrescentou.
“Desabamos de cansaço e tentamos esquecer a fome. Mas nunca vou esquecer das lágrimas das mães na porta do hospital implorando por leite em fórmula para seus bebês.”
’33 mortos por desnutrição em 48 horas’
Diante da deterioração das condições em Gaza, o Ministério da Saúde local está classificando o número de mortos por categorias.
Na terça-feira, foi informado que 33 pessoas, incluindo 12 crianças, morreram por desnutrição nas últimas 48 horas, elevando o total de mortes por desnutrição para 101, sendo 80 crianças. Nesta quarta-feira (23/07) foram informadas outras 10 mortes por desnutrição.
O Ministério também indicou que 1.026 pessoas morreram pelas mãos do exército israelense enquanto buscavam ajuda alimentar desde que o sistema de distribuição da Fundação Humanitária de Gaza começou, em 27 de maio.
A ONU divulgou um número ainda maior, de 1.054 mortes.
Segundo a ONU, aproximadamente 87,8% de Gaza está hoje coberta por ordens de evacuação de Israel ou se encontra dentro de zonas militarizadas israelenses, o que deixa os 2,1 milhões de habitantes confinados em um território de 46 km².

Israel lançou uma campanha militar em Gaza em resposta ao ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, que matou 1.200 pessoas e levou outras 251 como reféns, segundo as autoridades israelenses.
Desde então, os ataques de Israel mataram pelo menos 59.029 pessoas, incluindo mais de 17 mil crianças, e feriram mais de 142 mil, segundo o Ministério da Saúde de Gaza.
Israel diz que fome é ‘tática do Hamas’
O porta-voz do governo israelense, David Mencer, afirmou que não há fome causada por Israel.
“Há uma escassez provocada pelo homem, arquitetada pelo Hamas”, disse.
Mencer iniciou sua declaração expressando “profundo pesar” pela perda de soldados israelenses. Segundo ele, 895 soldados morreram desde 7 de outubro de 2023.
Ela acrescentou que dois militares foram mortos recentemente no sul de Gaza.
Segundo Mencer, a ajuda tem chegado até Gaza por meio da Fundação Humanitária de Gaza e por remessas coordenadas pela ONU com matérias-primas para padarias e cozinhas comunitárias.
Ele ainda afirmou que, entre 19 de julho e a última terça-feira, mais de 4.400 caminhões entraram em Gaza, contendo alimentos, farinha e comida para bebês.
Ontem, a Fundação Humanitária de Gaza teria distribuído dois milhões de refeições em um único dia, segundo Mencer, que afirmou que 87 milhões de refeições no total foram distribuídas pela organização.
“Hamas está tentando impedir a distribuição de comida. Eles estão saqueando os caminhões de ajuda”.
O porta-voz do governo de Israel também declarou que, nas últimas 24 horas, mais de 700 caminhões de ajuda estão dentro de Gaza, aguardando retirada pela ONU.
Mencer culpou a ONU por esse “gargalo” e sugeriu que a organização seja o principal obstáculo para manter o fluxo de ajuda para Gaza.
Ao ser questionado sobre o comunicado de mais de 100 organizações humanitárias, que denunciaram fome generalizada em Gaza e pediram por um cessar-fogo, o porta-voz afirmou que as alegações de fome têm sido recorrentes ao longo do conflito, mas que são “alertas falsos”.
“Onde há fome em Gaza, é uma fome arquitetada pelo Hamas.”
Segundo ele, a fome seria uma tática do Hamas para pressionar Israel.