Uma retrospectiva histórica faz-se necessária para que possamos ver a evolução e as conquistas dos direitos à saúde infantil, ao marco legal da Primeira Infância. Como era a vida da saúde materna, bem antes da SUS, nos 62 municípios do Amazonas? Aqui exponho neste pequeno artigo, uma experiência que foi como um estopim, em várias partes do Brasil, que foi se avolumando até chegarmos ao Artigo 227 da CF/88 e ao Artigo 4º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Costumava em minhas viagens, ao chegar cedo nas localidades interioranas dos municípios amazônicos ou das nucleações mais populosas, pular do barco e andar pelos caminhos. Queria encontrar as pessoas nas suas casas, vê-las nos roçados, chegando ou indo para a pesca. Também encontrava crianças alegres trafegando, quase sempre correndo em turmas, tanto para ir à beira do rio tomar banho, quanto indo e voltando da escola.
Com certeza andavam juntas por conselho e proteção dos pais a fim de evitar o perigo de cobras venenosas ou algum molestador. O direito de ir à escola era coisa rara, só possível em comunidades onde se encontravam algum professor capaz de enfrentar a precariedade para exercer seu ministério.
Os caminhos eram longos, quilômetros a fio estendidos pelas matas, margeando ou escondendo o rio. Aqui e acolá, o caminho era cortado por igarapés em que os próprios comunitários derrubavam árvores para servir de ponte. A travessia era fácil para malabaristas de circo e eu já estava no treino.
As crianças passavam correndo, em tom alegre de brincadeira e diversão. Certamente, o direito de brincar para os sobreviventes, que tinham superado os riscos de morrer na Primeira Infância, estava garantido com criatividade de dar inveja às crianças paradas diante da televisão se envenenando de desejos fúteis de consumo.
As casas que visitava pelos caminhos distanciavam-se uma das outras de forma diferenciada. Quase sempre para chegar até a casa, havia caminhos variados que saíam para diferentes direções. Aventurava-me, muitas vezes, nesses caminhos que se aprofundavam na direção da floresta. Foram neles que encontrei algumas vezes cemitérios clandestinos. Percebi que eram quase todos de crianças, nascidas prematuramente, sem nenhum acompanhamento pré-natal. Segundo disseram-me aquelas cruzes, debaixo de árvores, eram de abortos espontâneos e de crianças pequenas que não resistiram ao “mal de sete dias”, que hoje sabemos ser tétano neonatal e outras doenças. Até então, o direito de comer era mais ou menos garantido, nem sempre suficientemente satisfatório para o sustento da vida. Entretanto, temos muitas árvores frutíferas na floresta, que fornecem alimento nutricional de grande qualidade, como o açaí, o tucumã, a pupunha e o buriti das várzeas.
Esses cemitérios clandestinos e esparsos, chamaram-me a atenção para realizar uma pesquisa acerca da mortalidade infantil. Minha fonte, nesse caso, só podia ser o hospital da cidade e o cartório, mesmo sabendo que a subnotificação invalidaria qualquer resultado. A notificação acontecia somente quando a mãe já doente ou a criança já gravemente enferma vinham para a cidade.
Procedemos essa pesquisa amadora e nos assombramos com os indicadores altos de mortes de crianças. Ainda nem se falava de Pastoral da Criança ou de Saúde da Família, muito menos em pediatria avançada ou UTI neonatal.
Entretanto, havia um foco cidadão de ativismo na defesa favorável ao direito de nascer e viver com dignidade, mesmo em situações de pobreza, de abandono ou de ausência de políticas públicas. Com o toque da fé e por uma fraternidade universal, elaboramos reflexões bíblicas em rodas de conversa para discutir e rezar o tema, incentivar o acompanhamento pré-natal.
Nossa fé e nossa humanidade nos obrigam a lutar pela erradicação da pobreza que gera a morte de tantas crianças e nos arranca do fatalismo. Descobrir as causas de tanta iniquidade e construir uma nação democrática será possível no mínimo respeitando a Constituição Federal de 1988 e a Convenção de Genebra de 1949.