Quando ela passa nas ruas do Parque Dez, os cachorros, os gatos e até papagaios querem chamar a sua atenção. Não tem vaidade, usa sempre uma farda da cor branca, cabelos presos e mora num pequeno quarto numa vila de casa. Tem um coração bondoso, uma paciência e uma qualidade profissional invejável. Quando sai para trabalhar toda vizinhança já sabe que irá para um compromisso desafiador e muito digno.
Dona Márcia é uma enfermeira da Unidade de Terapia Intensiva que adora cuidar dos animais. Na sua pequena moradia, os gatos resgatados das ruas vivem com conforto e carinho. Agora resolveu cuidar de dois cachorros que foram abandonados e estavam chorando com fome e sede. Embora viva sempre no sufoco financeiro, uma vez que não ganha um supersalário, não deixa de comprar o mínimo necessário para os bichinhos.
Sem citar nomes – postura ética da Dona Márcia -, um certo dia, eu a ouvi contar histórias sobre os seus pacientes terminais. Pessoas jovens, adultas e velhas com pouco dias de vida, confinadas em casas ou em hospitais, condenadas à morte por causa de acidentes, de crimes violentos e de doenças irreversíveis. Todo dia ela chora, todo dia a Dona Márcia perde um paciente.
E cada paciente tem sua história de alegrias, de tristezas, de frustrações, de ódio, de amor e de arrependimentos. E é na condição de profissional de saúde, na administração de medicamentos e na higienização pessoal dos pacientes, como a troca de um fraldão, que muitos relatam vidas de glórias e de abandonos.
São nesses últimos momentos frágeis da existência que vem à mente trajetórias e reflexões sobre quais os sentidos da vida e da morte, independentemente da religião, da cor, do gênero, da profissão e da classe social. O dinheiro, o poder e o orgulho são irrelevantes diante da morte.
Ouvindo os relatos da Dona Márcia, lembrei dos momentos derradeiros do ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez, consumido pelo câncer, ele pedia ao subordinado para não morrer; o ex-dono das organizações Globo falava ao seu empregado para tirá-lo daquela situação; e o ex-presidente dos Estados Unidos, George Bush Pai, teve como destaque no seu velório, o seu grande amigo: o cachorro Sully que ficou ao lado dele até o fim.
Na última segunda-feira, eu estava tomando café numa padaria, quando a Dona Márcia chegou ao local. Do lado de fora do estacionamento ficaram os gatos e os cachorros que andam com ela. A enfermeira ficou observando as falas do atual presidente dos Estados Unidos Donald Trump que aparecia em uma reportagem de televisão. Depois olhou pra mim e disse: “gostaria de conversar com esse presidente e mostrar para ele que a vida não é somente ódio, dinheiro e poder. Mas um dia saberá que cada pessoa no mundo é importante para Jesus Cristo, assim como os animais”.
E foi embora agarrada aos seus bichinhos para dormir o sono dos sonhadores, após uma noite no plantão em uma UTI de choros e de dor. Eu continuei tomando café e lendo os diálogos de Sócrates em que os sofistas acreditam que os mais fortes e espertos estão acima de tudo e de todos.
Carlos Santiago é Sociólogo, Cientista Político e Advogado