Tenho repetido, há muitos anos, uma equação simples que resume o desafio da Amazônia: floresta em pé e pessoas em movimento. Não é slogan de campanha. É síntese de projeto de país. A floresta só permanece em pé se as pessoas tiverem, ao seu redor, uma economia legal que ofereça trabalho, renda, conhecimento e dignidade. E as pessoas só se põem em movimento se houver oportunidades concretas, não apenas discursos.
O propósito é repartir oportunidades
A Zona Franca de Manaus foi concebida exatamente nesse espírito. Quando a Constituição do Brasil autorizou contrapartidas fiscais especiais para a nossa região, não o fez para agradar empresários nem para criar um enclave industrial isolado da realidade social. A Carta de 1988 foi explícita: o objetivo é reduzir desigualdades regionais. Toda política tributária diferenciada para a Amazônia se sustenta nessa finalidade.
Se esse é o propósito, então há um desdobramento que precisa ser dito com todas as letras:
todo centavo arrecadado, todo fundo, toda taxa que nasce dessa política deveria ser usado, prioritária e rigorosamente, na redução das desigualdades que a justificam.
Traindo a Constituição
Quando vemos o Polo Industrial de Manaus gerar faturamento robusto, garantir uma base tributária incomparável, abastecer fundos importantes, e, ao mesmo tempo, assistimos a Manaus figurar entre as capitais mais desiguais do país, com metade da população em áreas de favela e precariedade, não é a Zona Franca que está traindo a Constituição. É o uso que se faz da riqueza que ela produz.
Faturamento em alta
Do lado da produção, o que temos? Um PIM que gera riqueza de forma contínua, que paga, em média, melhor do que os grandes setores da economia amazonense, que oferece mais estabilidade e benefícios, que sustenta cadeias de comércio, logística, serviços e alimentação. Um PIM que alimenta o FTI, o FMPES, a pesquisa e desenvolvimento, que ajuda a manter de pé a universidade pública que alcança todos os municípios do estado. Um PIM que garante ICMS e ISS em patamares que seriam impensáveis sem esse modelo.
Distribuição na fila da desigualdade
Do lado da vida concreta nas ruas, o que vemos? Bairros inteiros ainda sem saneamento, famílias empurradas para encostas e igarapés, informalidade dominando o cotidiano, juventude sem horizonte nítido de educação e trabalho digno. A floresta, em grande parte, segue em pé. As pessoas, em grande parte, seguem paradas na fila da desigualdade.
Não se trata de idealizar a indústria. Eu conheço o chão de fábrica e sei que há muito a melhorar em qualificação de mão de obra local, em integração com a bioeconomia, em transparência das contrapartidas. Mas é um erro grave, e conveniente para alguns, colocar no colo do PIM a responsabilidade exclusiva por algo que está, sobretudo, na esfera das políticas públicas.
A quem compete o quê?
A geração de riqueza é responsabilidade do modelo econômico. A distribuição da riqueza, a correção de rumos, a redução da pobreza e da favelização, a entrega concreta de moradia, saneamento, educação e saúde são responsabilidades do Estado – União, Estado e municípios. Quando essa segunda parte falha, não adianta culpar a primeira.
Hoje temos duas saídas claras diante de nós.
A primeira é uma revisão pública e transparente dos modelos de aplicação desses recursos. Precisamos abrir, sem medo, a rota do dinheiro da Zona Franca. Quanto entra em ICMS, ISS, FTI, FMPES, P&D, taxas e contribuições? Para onde vai cada parcela? Em que obras, em quais bairros, em quais municípios? Quanto de tudo isso chega, de fato, às áreas de maior vulnerabilidade? Sem esse raio X, a Constituição vira peça decorativa, e a política tributária especial perde o vínculo com sua razão de ser.
A segunda saída é assumir, com maturidade, a Obrigação de Fazer. Se, mesmo diante da luz acesa, continuarmos a ver recursos desviados de sua finalidade constitucional, não se trata apenas de um problema político, mas jurídico. A Constituição autorizou incentivos para reduzir desigualdades. Se isso não acontece, ou acontece apenas de forma residual, há espaço – e há necessidade – para acionar os mecanismos constitucionais de controle: Ministério Público, tribunais de contas, instrumentos de vinculação de recursos a metas sociais claras e verificáveis.
Fogo amigo
Há ainda um ponto delicado, que preciso registrar. Quando analistas amazonenses, muitas vezes bem-intencionados, fazem críticas apressadas e distorcidas à Zona Franca – dizendo que o PIM “paga pouco”, que “só produz miséria”, sem olhar o conjunto da equação –, acabam, sem perceber, prestando um grande serviço aos adversários centro-sulinos do modelo.
Em Brasília e nos grandes centros do Sul e Sudeste, cada frase descuidada dita aqui vira munição de luxo lá. O que nasce em Manaus como “crítica social” é usado, do outro lado do balcão, como prova de acusação: até os próprios amazonenses estariam admitindo que a Zona Franca fracassou. E assim, em nome de uma indignação legítima, enfraquece-se justamente o instrumento que, se bem gerido, pode ser a alavanca mais poderosa para mudar a realidade que se pretende denunciar.
Que se cobre da indústria o que é da indústria
Não defendo silêncio, nem complacência. Defendo rigor. Que se cobre da indústria aquilo que é da indústria. Que se cobre do Estado aquilo que é do Estado. Que se respeite, com seriedade, o que a Constituição determinou ao conceder contrapartidas fiscais à Amazônia.
Floresta em pé e pessoas em movimento não é um enfeite de fala. É um compromisso. Se a riqueza gerada pela Zona Franca continuar não chegando, com prioridade, às periferias, aos igarapés, aos municípios mais frágeis, então não será o modelo que terá falhado com o país. Teremos nós falhado com a Constituição e com a nossa própria gente, ao aceitar que uma política criada para reduzir desigualdades seja usada para administrá-las, quando deveria estar empenhada em superá-las.
Nelson é economista, empresário, presidente do SIMMMEM, Sindicato da Indústria Metalúrgica, Metalomecânica e de Materiais Elétricos de Manaus, conselheiro do CIEAM e da CNI e vice-presidente da FIEAM

