Maria… Ouvi tiros lá fora… não é coisa de gente decente. Parece que mataram alguém. Que susto! No meio da noite isso acontecendo, e aqui pertinho. Acho que vou olhar o que ocorreu… Eu sei que tenho que levantar cedo para trabalhar. Também sei que você trabalhou o dia todo. É só um pouquinho. Isso não é normal. Não! Eu nunca vou me acostumar com a violência que paira no mundo. Sabe que hoje mesmo estava escutando duas músicas que falavam sobre isso… De quem são? Não sei! Mas lembro que uma delas dizia: a violência toma conta da cidade; a outra, acho que falava… a vigilância cuida do normal. Músicas antigas… como diz aquele cantor famoso: “página desbotada da memória das novas gerações.” Nunca entendi o que quis dizer com isso.
Que demônio! É uma escuridão só. Não vejo nada! O tiro pareceu que foi aqui dentro de casa. É que de madrugada todo menor barulho é uma explosão. Será que foi na nossa rua? Talvez na casa de um vizinho… Os meninos dos vizinhos agora deram de aprontar. O mais danado é aquele Guri da Dona Socorro. Até um dia desse era estudioso. A mãe dizia que seria doutor. O primeiro da família. Mas se meteu com aquela turma do tráfico, aqueles que querem tudo de bom, mas sem estudar. Perdeu-se! Eu não vi. Mas a Dona Socorro disse que até polícia um dia desses deu aqui na rua. Que vergonha meu Deus! Ainda bem que não tive filhos. Uma sensação de dó, de vazio e, também, de alívio.
Que vontade de ir lá fora olhar. Mas a Maria… vai ficar uma fera se eu fizer um barulho, por menor que seja. Daqui da janela não consigo ver nada. Do portão, talvez consiga ver. Olha’i… um carro da polícia. Mais outro carro. Eu morro de medo de polícia. Olhando de cara feia para o povo humilde. Um dia desses eu vi o ex-presidente falar pra gente se armar, mas como eu vou comprar um negócio desse? Acho que ele nunca vai entender as dificuldades da população mais pobre. Que escuridão! Que silêncio! Que solidão! Agora me bateu uma saudade dos tempos idos. Mas também nunca foi um tempo bom. Parece que cada tempo tem sua forma de violência. Antigamente, pelo menos a gente podia sair de casa, passear, era menos violento. Agora, o perigo tá em todos os cantos.
Luzes do carro da polícia. Outro tiro. Mais um. Um grito! Um choro! Meu Deus! Mais uma tragédia. Mais uma morte de um jovem. Só jovens que morrem nesse país. A Maria… adormeceu. Agora, dá pra ver. Tem alguns jovens sendo algemados. Não acredito! Tem um deles no chão. Acho que morreu. Outro dia vi um jornal dizendo que os jovens que mais morrem no Brasil são os negros. Não consigo ver direito quem morreu. Minha nossa, foi o Francisco, o coroinha da igreja. Que coisa absurda! Mas não podia ser diferente. Num país no qual se manda comprar armas ao invés de livros, que se cria estandes de tiros ao invés de escolas, que não se priorizam trabalho, o saber e a cultura, os caminhos trilhados pelos jovens são os da marginalização e do fracasso. Onde, até “os bons morrem jovens”, como diz aquela canção.
Carlos Santiago é Sociólogo, Cientista Político e Advogado.