Imagine a cena: você prestes a entrar no tatame ou ringue, luvas calçadas e coração acelerado. Mas, em vez de aquecer a mente, seus olhos estão na tela do celular. Em um momento que deveria ser de concentração total, você desliza o dedo pelo feed do Instagram ou responde àquela última mensagem no WhatsApp. Parece algo inocente, quase um ritual moderno para “matar o tempo”. Mas será que esse hábito cotidiano está silenciosamente sabotando sua capacidade de foco e reação? Estudos científicos recentes indicam que sim o smartphone pode funcionar como um oponente oculto, drenando sua atenção, diminuindo seus reflexos e minando sua preparação mental.
A seguir, neste formato de perguntas e respostas provocativas, vamos dissecar esse problema e entender como o celular pode ser o inimigo invisível da performance em esportes de combate, e o que fazer para virar esse jogo.
Vanguarda do Norte: Celular antes do treino: distração inocente ou golpe na concentração?
Dr. Amaral: Antes de um treino pesado ou de uma luta, muitos lutadores checam mensagens, redes sociais ou notícias no celular quase no automático. Pode parecer algo trivial, mas a ciência sugere que isso é qualquer coisa menos inofensivo. A mera presença física do smartphone por perto já pode roubar recursos cognitivos do cérebro, num fenômeno apelidado de “brain drain” (dreno mental). Em um experimento famoso, participantes que mantiveram o celular à vista (mesmo desligado) tiveram pior desempenho em testes de atenção e memória, comparados a quem deixou o aparelho longe – ou seja, só de o telefone estar ali, a capacidade cognitiva disponível caiu sensivelmente. Em esportes de combate, que exigem alerta total e reação rápida, esse tipo de distração silenciosa é um golpe na sua concentração. Além disso, um estudo com quase 300 atletas descobriu que 1 em cada 3 admitia checar o Facebook durante a competição e a maioria o fazia até 2 horas antes e quanto mais próximo da luta eles usavam a rede social, mais relatavam dificuldade de concentração e ansiedade competitiva . Ou seja, aquele scroll despretensioso no celular antes do treino pode, sim, ser uma distração traiçoeira, diminuindo sua capacidade de foco exatamente quando você mais precisa dela.
VDN: Redes sociais e games no smartphone deixam você mentalmente cansado?
Dr. Amaral Você já saiu de uma sessão longa no celular sentindo a mente meio lenta ou
esgotada? Não é impressão sua isso é fadiga mental. Pesquisas demonstram que
atividades cognitivamente exigentes, inclusive jogar videogame ou usar redes sociais
no smartphone, podem cansar o cérebro e prejudicar decisões e reflexos posteriores .
Em outras palavras, passar 30 minutos imerso no Instagram, TikTok ou naquele jogo
mobile pode deixar sua mente “baqueada” para o que vier depois. Um experimento com
jogadores de futebol profissional mostrou exatamente isso: meia hora usando
WhatsApp, Facebook e Instagram foi o suficiente para induzir fadiga mental e derrubar
a qualidade das decisões de passe em campo . Os atletas que ficaram no celular ou
jogando FIFA antes de partidas simuladas tomaram decisões piores, cometendo mais
erros de escolha, comparados aos que ficaram longe das telas . Importante: eles não
passaram menos a bola passaram tanto quanto os outros porém, as escolhas de passe
foram avaliadas como muito menos adequadas. Traduzindo para lutas: você pode até
golpear tanto quanto sempre, mas se sua capacidade de escolher o golpe certo ou
reagir no timing exato estiver prejudicada, sua performance técnica despenca. Esse
efeito não é irrelevante reflexos atrasados e decisões erradas podem ser a diferença
entre acertar ou levar um golpe. Não à toa, os autores desse estudo alertam que o uso
de redes sociais ou games antes de competir prejudica o desempenho e recomendam
aos treinadores evitarem que atletas se exponham a mais de 30 minutos de celular
antes das lutas ou treinos importantes. Em suma: redes sociais e joguinhos no celular
podem sim te deixar mentalmente cansado, minando seus reflexos e tomadas de
decisão quando você mais precisa estar 100%.
VDN: Lutadores conectados lutam pior? O que diz a ciência sobre boxeadores e cia.?
Dr. Amaral: Isso tudo vale também para quem luta boxe, MMA, judô ou jiu-jitsu! As
evidências dizem que sim. Um estudo recente com 21 boxeadores amadores de alto
nível revelou que tanto as decisões de ataque quanto as de defesa pioraram
significativamente após apenas 30 minutos de uso de aplicativos de redes sociais no
smartphone um efeito semelhante ao observado quando eles jogaram videogame pelo
mesmo período . Ou seja, antes mesmo do primeiro soco, o lutador mentalmente
fatigado pelo celular já está um passo atrás, tomando decisões mais lentas e menos
acertadas no ringue. Isso pode se traduzir em hesitar para aproveitar uma abertura ou
não reagir a tempo a um contra-ataque, falhas que custam caro em um sparring ou
combate. E não são só socos e chutes: esportes de combate exigem processamento
rápido de informações identificar padrões do oponente, lembrar a estratégia treinada,
controlar o espaço – tarefas cognitivas sutis que ficam comprometidas quando o
cérebro está fatigado. Embora a pesquisa ainda seja nascente, já é alarmante o
suficiente saber que um hábito tão comum (rolar o feed ou jogar no celular) pode reduzir
seu desempenho cognitivo e técnico em combate . Se até boxeadores – cuja vida
depende de decisões em frações de segundo sentem o baque, podemos imaginar que
lutadores de MMA, judô ou jiu-jitsu também não estão imunes. Em suma: lutadores
conectados demais podem, sim, lutar pior, sem nem perceber que o “vacilo” começou
fora do tatame, na telinha brilhante do celular.
VDN: Você consegue entrar no “modo luta” com o celular na mão?
Dr. Amaral: Todo atleta de combate conhece a importância de entrar no estado mental
ideal antes da luta aquele “modo luta” em que o mundo exterior some e só existe o foco
total no combate. Mas se em vez de esvaziar a mente você está enchendo ela de
informações do celular, como esperar entrar nesse estado? Até campeões olímpicos já
caíram nessa cilada. A nadadora australiana Emily Seebohm, após perder o ouro por
frações de segundo em Londres 2012, desabafou que ficou tempo demais no Twitter e
Facebook na noite anterior e não conseguiu “sair das redes e entrar na própria cabeça”
para focar . O próprio técnico dela concordou, dizendo que “adoraria jogar alguns
daqueles celulares fora”, reconhecendo o quanto o excesso de mídias era um problema
para a concentração de suas atletas . Leve essa situação para o universo das lutas: o
trash talk online, as provocações de adversários nas redes, as mensagens de amigos e
fãs tudo isso pode povoar sua mente quando ela deveria estar afiada e tranquila. Em vez
de visualizar o primeiro golpe ou revisar mentalmente a estratégia, você fica ruminando
um meme ou uma notícia que viu no celular. O resultado? Você entra no ringue sem estar
100% presente, meio disperso, com a cabeça “fora do lugar”. Sem uma preparação
mental plena, é difícil ativar o flow aquele estado de fluxo em que seu desempenho
atinge o auge. Qualquer notificação pingando no aparelho é como um puxão te
arrancando desse foco profundo. Portanto, manter o celular em mãos até instantes
antes da luta pode impedir que você atinja o estado de prontidão máxima, crucial para
reagir rápido e pensar com clareza sob pressão.
VDN: Bastidores da luta: ansiedade em alta graças ao celular?
Dr. Amaral: Os minutos (ou horas) de espera nos bastidores antes de uma luta são
tensos. É tentador pegar o celular para se distrair da ansiedade mas essa pode ser uma
estratégia tiro pela culatra. As redes sociais são uma montanha-russa emocional: em
segundos, você pode ver desde mensagens de apoio até críticas afiadas ou notícias
preocupantes, tudo misturado. Esse turbilhão digital pode aumentar sua ansiedade sem
você se dar conta. Estudos já ligaram o uso de Facebook a níveis mais altos de
ansiedade em atletas . Especificamente, acessar redes sociais próximo da competição
foi associado a mais dificuldade de concentração e preocupação (componentes da
ansiedade competitiva) e isso piorava quanto mais perto da luta era o acesso .
Notificações push também mostraram um impacto: atletas que deixavam as
notificações ativadas apresentaram níveis ligeiramente maiores de ansiedade e
preocupação pré-competitiva . Ou seja, cada plim do celular horas antes da luta pode
ser um pequeno choque de tensão adicionada. Some-se a isso o conteúdo emocional:
imagine ler comentários desacreditando seu treino, ver uma notícia de última hora sobre
seu oponente trocando de estratégia, ou até uma cobrança daquela prova da faculdade
tudo isso são distratores emocionais que tiram você do estado mental ideal e plantam
sementes de dúvida ou nervosismo. O flow, aquela sensação de estar completamente
imerso e confiante, pode ser sutilmente sabotado por essas microtensões geradas via
smartphone. Por isso, muitos treinadores e psicólogos recomendam cautela máxima
com o celular nos bastidores: ele pode virar uma fonte de distração e ansiedade
justamente no momento em que você precisa de calma e foco absolutos.
VDN: Como virar o jogo: dicas para não deixar o smartphone nocautear sua performance
Dr. Amaral: Se o celular pode ser vilão, será que dá para transformá-lo em aliado ou pelo
menos neutralizar seus efeitos negativos? A boa notícia é que sim. Especialistas
sugerem algumas estratégias de “higiene digital” para atletas de alto rendimento. A
primeira delas é estabelecer limites de uso antes de treinos e competições. Por
exemplo, evitar qualquer uso prolongado (≥30 min) de redes sociais ou games no
celular por pelo menos uma hora antes do treino/luta já pode prevenir aquela fadiga
mental indesejada. Alguns atletas adotam até um “detox” digital no dia da competição:
desligam notificações ou entregam o aparelho a um membro da equipe para não terem
nenhuma tentação ou notícia inesperada. Também é inteligente selecionar o que você
faz no celular no pré-competição. Prefira usos intencionais e benéficos: ouvir uma
música que te motive, revisar um vídeo específico de estratégia ou usar um app de
meditação/breathwork para acalmar a mente. Uso produtivo e com propósito tende a
não atrapalhar ao contrário do uso dispersivo, que é o grande problema.
Pesquisadores distinguem esse uso facilitador (produtivo, intencional) do uso debilitante (improdutivo, por hábito ou tédio). Em outras palavras, não é só o tempo de tela, mas como e quando você a usa. Outra dica é manter discussões francas na equipe sobre o assunto: treinadores e atletas devem conversar e criar regras personalizadas para o uso de smartphones, levando em conta o contexto de treino, competição e a personalidade de cada um. Evitar soluções genéricas (“celular proibido sempre”) pode ser sábio em vez disso, desenvolver autoconsciência no atleta sobre os efeitos do celular e estimulálo a ter autonomia responsável no uso é a abordagem recomendada por consultores de performance mental. Em nível mais amplo, já se fala em incorporar educação sobre dependência de celular nos programas de atletas. Uma revisão de 2024 ressaltou que o uso problemático de smartphones está diretamente ligado à saúde física e mental e ao desempenho de esportistas, chamando atenção para criar protocolos de treinamento que previnam esse mal moderno.
Em resumo, as recomendações práticas incluem:
– Estabelecer “zonas livres de celular” antes de momentos críticos: por exemplo, nada de
celular 30-60 min antes do treino ou lutas. Use esse tempo para aquecer, concentrar e
entrar no modo luta sem interferências.
– Desativar notificações ou usar modo não perturbe em períodos de foco: isso evita que
bipadas e prévias de mensagens fisguem sua atenção quando você precisa estar
presente.
– Uso consciente e positivo: se for usar o celular, que seja para algo que agregue à sua
preparação (música motivadora, análise de vídeos do adversário, meditação guiada).
Fuja do scroll infinito e de conversar em dez grupos aleatórios antes da competição.
– Higiene do sono digital: lembre que usar o smartphone até tarde da noite pode
atrapalhar seu sono – e privação de sono acaba com o desempenho. Tenha um toque de
recolher digital; por exemplo, nada de tela azul 1-2 horas antes de dormir na véspera da
luta. Isso ajuda você a ter sono de qualidade e chegar no dia D com energia total.
– Autoconhecimento: preste atenção em como o uso do celular te afeta. Você fica agitado
ou disperso depois de muita rede social? Sente FOMO (fear of missing out) se não
checar o aparelho? Saber disso ajuda a criar estratégias – como delegar alguém de
confiança para filtrar informações importantes no dia da competição, para você não
precisar checar nada.
– Ambiente de apoio: combine com seu treinador e colegas de equipe acordos sobre
celular. Por exemplo, todo mundo guarda o telefone 30 min antes do treino começar,
criando um ambiente de concentração coletiva. Ter esse apoio mútuo torna mais fácil
seguir as regras.
No fim das contas, a mensagem é clara: o smartphone, assim como um treino de força ou a dieta, deve ser gerenciado estrategicamente pelo atleta. Ele não precisa (e nem deve) ser demonizado – afinal, pode servir para visualizar técnicas, comunicar-se com o técnico, ouvir músicas que melhoram seu humor, etc. – mas também não pode ser seu mestre, roubando sua atenção e energia mental sem controle.
Lembre-se: enquanto você se prepara para nocautear seu oponente visível, cuide para não ser nocauteado pelo oponente invisível no seu bolso. Concentre-se, estabeleça limites e use a tecnologia a seu favor assim, quando a campainha soar, você estará 100% presente, focado e pronto para dar o seu melhor.
As evidências científicas demonstram que o excesso de celular pode ser um inimigo oculto da performance mas, com consciência e disciplina, você pode retomar o controle e lutar no seu máximo potencial.