A obesidade infantil ultrapassou, pela primeira vez na história, os índices de
desnutrição no mundo. Segundo o UNICEF, uma em cada dez crianças em idade escolar
vive hoje com obesidade — um alerta que se estende também ao Brasil, onde o número
de crianças com excesso de peso triplicou nas últimas duas décadas.
Por trás dos números, há uma realidade silenciosa: infâncias cada vez mais paradas,
telas que substituem o brincar, e hábitos alimentares moldados por produtos
ultraprocessados. Mas também há caminhos para reverter essa tendência.
Vanguarda do Norte: Quais são as principais causas da obesidade em crianças?
Dr. Ricardo Amaral Filho: A obesidade infantil não tem uma causa única é resultado de uma
combinação de fatores de estilo de vida, ambiente e predisposição genética. Vivemos
hoje em ambientes obesogênicos, que facilitam o ganho de peso. Entre as principais
causas, podemos destacar:
- Sedentarismo (falta de atividade física): As crianças modernas estão se mexendo menos do que o recomendado. A OMS orienta pelo menos 60 minutos diários de atividade física moderada a vigorosa para crianças e adolescentes, mas poucas alcançam essa meta. Brincadeiras ao ar livre e esportes deram lugar a atividades paradas, reduzindo o gasto de energia. Esse estilo de vida mais parado contribui diretamente para o ganho de peso.
- Alimentação rica em ultraprocessados: Biscoitos, salgadinhos, refrigerantes, fastfood… Infelizmente, esses itens pouco nutritivos ocupam grande parte do cardápio infantil hoje. Alimentos ultraprocessados, cheios de açúcar, gorduras não saudáveis, sal e aditivos, têm substituído as frutas, verduras e a comida caseira na dieta das crianças. O resultado é um consumo excessivo de calorias “vazias” que favorece o ganho de peso e até pode prejudicar os mecanismos de saciedade no organismo infantil.
- Tempo excessivo de tela: Televisão, videogame, celular e tablet competem com as brincadeiras ativas. Muitas crianças passam horas em frente às telas diariamente tempo esse em que ficam paradas e muitas vezes beliscando petiscos pouco saudáveis. Estudos mostram que excesso de telas contribui para o sedentarismo e alterações metabólicas nas crianças . Além disso, a exposição intensa à publicidade de alimentos (nos comerciais e apps) estimula o consumo de guloseimas.
- Sono inadequado: Pode não parecer óbvio, mas dormir mal ou menos horas do que o necessário também está associado à obesidade infantil. A criança que não dorme o suficiente tem desequilíbrio em hormônios que controlam o apetite e costuma sentir mais fome de alimentos calóricos . Além disso, o cansaço a deixa menos disposta a brincar ou fazer exercício, fechando um ciclo negativo.
- Falta de espaços seguros para brincar: Em muitos lugares, a ausência de parques, praças ou mesmo a insegurança nas ruas limita as atividades físicas das crianças. Sem ter onde correr, andar de bicicleta ou jogar bola com segurança, elas acabam confinadas em apartamentos ou frente à TV. Essa “desigualdade de lazer” faz com que crianças de áreas com pouca estrutura de recreação tenham índices maiores de obesidade infantil.
- Fatores familiares e genéticos: A predisposição genética é um componente crianças com pais obesos têm mais chance de também ter excesso de peso. Mas, mais que genética, os hábitos da família influenciam muito. Dietas familiares ricas em frituras e doces, consumo frequente de fast-food, refrigerantes à vontade, além de pouca rotina de atividade física em família, criam um ambiente propício ao ganho de peso na criança.
Vale lembrar: a criança aprende por exemplo. Se o estilo de vida da casa é sedentário e
com má alimentação, ela provavelmente seguirá esse padrão.
A obesidade infantil é um fenômeno multifatorial. Vivemos numa época de calorias
fáceis e gasto calórico reduzido, o que torna realmente desafiador manter as crianças
dentro de um peso saudável.
VDN: Quais os riscos para a saúde de uma criança obesa?
Dr. Amaral: Os riscos para a saúde de uma criança com obesidade são numerosos e preocupantes. A obesidade é uma “doença silenciosa” em crianças, pois muitos dos danos vão se acumulando sem sintomas aparentes de imediato. Mas as pesquisas são claras: a obesidade infantil traz consequências sérias, tanto físicas quanto emocionais, que podem se manifestar já na infância e adolescência e se agravam na vida adulta.
Alguns dos principais riscos incluem:
– Diabetes tipo 2 precoce: Crianças obesas têm maior resistência à insulina e podem
desenvolver diabetes tipo 2 em idades cada vez mais jovens, algo que antes era visto
quase só em adultos . Isso é muito sério, pois diabetes mal controlada traz
complicações para a vida toda (problemas de visão, rins, circulação, etc.
– Hipertensão e problemas cardíacos: O excesso de peso sobrecarrega o sistema
cardiovascular. Crianças com obesidade costumam apresentar pressão arterial elevada
e alterações em colesterol e triglicerídeos. Esses são fatores de risco para doenças do
coração no futuro. Já na infância, pode haver engrossamento das artérias. Em resumo, a
obesidade infantil planta as sementes de infartos e derrames no adulto.
– Problemas ortopédicos e respiratórios: O peso excessivo afeta ossos e articulações em
crescimento. É comum crianças obesas terem dor nos joelhos, pés planos, desvios
posturais ou lesões ortopédicas. Além disso, podem sofrer de apneia do sono (paradas
respiratórias durante o sono), asma ou menor capacidade respiratória devido à gordura
acumulada no tórax. Esses problemas limitam a mobilidade e a disposição para brincar,
criando um ciclo vicioso.
– Doenças do fígado e outras complicações metabólicas: a obesidade pode causar
acúmulo de gordura no fígado, levando a inflamação e dano hepático. Outras
complicações metabólicas incluem puberdade precoce ou síndrome dos ovários
policísticos em meninas, por exemplo.
– Alterações dermatológicas e outras: Problemas de pele como acantose (manchas
escuras em dobras, ligadas à resistência insulínica) e infecções de pele são mais
comuns. Enxaquecas e dores de cabeça também podem ser mais frequentes em
crianças com obesidade . Em geral, o corpo todo sente os efeitos do excesso de
gordura.
– Impactos psicológicos e sociais: Não podemos esquecer dos efeitos emocionais.
Crianças com obesidade infelizmente são alvos frequentes de bullying na escola e
podem sofrer discriminação, o que leva a baixa autoestima. Muitas se isolam por
vergonha do próprio corpo, evitando participar de atividades. Esses sentimentos podem
evoluir para depressão, ansiedade e transtornos alimentares (como bulimia) na
adolescência. O sofrimento emocional pode ser tão grave quanto o físico, afetando o
desempenho escolar e a qualidade de vida.
Criança obesa tende a se tornar um adulto obeso se nenhuma intervenção for feita. E com isso, os riscos de saúde se prolongam e até se agravam. Estudos mostram que a obesidade na infância está associada a maior chance de doenças crônicas mais cedo na vida adulta como diabetes, doenças cardiovasculares e até alguns tipos de câncer.
Também há evidências de que pessoas que foram obesas desde a infância têm expectativa de vida menor em comparação com aquelas que sempre estiveram em peso saudável.
A obesidade infantil afeta o corpo inteiro e a mente. Por isso, é fundamental prevenir e tratar o quanto antes.
VDN: O que podemos fazer em casa para prevenir o excesso de peso?
Dr. Amaral: A prevenção da obesidade infantil começa em casa. Boas notícias: pequenas
mudanças na rotina familiar podem fazer uma grande diferença. Confira algumas dicas
práticas que pais, mães e cuidadores podem adotar no dia a dia:
– Aleitamento materno e introdução alimentar saudável: A prevenção começa cedo, já nos
primeiros anos de vida. Sempre que possível, amamente seu bebê até os 2 anos ou mais,
conforme recomenda a OMS. O leite materno é um alimento completo e está associado a
menor risco de obesidade infantil, além de muitos outros benefícios para a saúde.
– Quando for introduzir outros alimentos, priorize comida de verdade: papinhas caseiras,
frutas, legumes evitando açúcar e ultraprocessados para o bebê. Esses primeiros
hábitos alimentares criam paladares mais saudáveis no futuro.
– Reeducação alimentar para toda a família: Não adianta exigir que a criança coma salada
enquanto o resto da família janta pizza e refrigerante. A mudança tem que ser coletiva.
– Faça da sua casa um ambiente saudável: encham a despensa com alimentos nutritivos
(frutas, verduras, cereais integrais, proteínas magras) e reduzam a presença de
guloseimas, frituras e bebidas açucaradas. Cozinhem mais em casa, envolvendo as
crianças no preparo das refeições – isso as anima a experimentar novos alimentos.
Quando todos se esforçam e praticam hábitos saudáveis juntos, as crianças tendem a
seguir esses exemplos. Lembre-se: os pais são espelho. Pequenas trocas no cardápio
(como frutas no lanche em vez de biscoito recheado, ou água no lugar de suco
industrializado) já apresentam resultados ao longo do tempo.
– Rotina ativa e brincadeiras em movimento: Criança gosta de brincar use isso a favor da
saúde! Incentive atividades físicas diariamente. Vale passeio de bicicleta, futebol no fim
de semana, pular corda, pega-pega, dança, o que a imaginação mandar. Quanto mais
cedo a criança se mexer e descobrir um esporte ou brincadeira de que goste, maior a
chance de ela se tornar um adulto ativo. Que tal limitar um pouco o tempo no sofá e
propor um momento “de atividade física” em família? Pode ser uma caminhada pósjantar ou jogos ao ar livre no parque. O importante é aumentar o gasto calórico de forma
divertida. Criança ativa dificilmente será um adulto sedentário.
– Limite o tempo de telas: Estabeleça regras claras para TV, videogame, celular e tablet.
Por exemplo, nada de eletrônicos durante as refeições ou antes de dormir. Para crianças
menores, a recomendação de especialistas é no máximo 1 hora por dia de tela para
crianças de até 5 anos e zero tela para menores de 2 anos. Prefira direcionar as
crianças para atividades lúdicas que movimentem o corpo e estimulem a criatividade.
Menos tela = mais movimento e menos exposição a propagandas.
– Sono em dia e rotina organizada: Estabeleça horários regulares para a criança dormir e
acordar, garantindo que ela tenha sono suficiente para a faixa etária (geralmente 9 a 11
horas por noite para escolares). Dormir bem é uma forma de prevenir a obesidade,
acredite! Quando a criança não dorme direito, seu relógio biológico desregula e há
alteração em hormônios que controlam a fome e saciedade – resultado: ela fica com
mais apetite e vontade de comer besteiras. Portanto, rotina é aliada da saúde. Ter hora
certa para as refeições em família, hora para brincar e para dormir traz segurança para a
criança e ajuda no equilíbrio do metabolismo.
VDN: Como podemos transformar esse cenário?
Dr. Amaral: Transformar o cenário da obesidade infantil exige um esforço coletivo não há
um único culpado, mas também não há um único salvador. Precisamos de uma
verdadeira aliança entre família, escola, profissionais de saúde, governos e sociedade
para virar esse jogo, caminhos para essa transformação:
– Políticas públicas integradas e liderança governamental: Os gestores públicos
(prefeitos, governadores, Ministério da Saúde, Ministério da Educação) precisam
encarar a obesidade infantil como prioridade de saúde pública e agir em várias frentes
simultaneamente.
– Escolas protagonistas na saúde: As escolas têm que colocar “saúde e movimento” no
centro de suas prioridades. Concretamente, isso significa garantir Educação Física de
qualidade em todas as etapas, com carga horária adequada e currículo focado em
letramento motor e diversão ativa.
– Famílias engajadas e apoiadas: Pais, mães e responsáveis são a primeira linha nessa
batalha. Precisam estar informados e conscientes do problema.
Importante dizer: é possível, sim, reverter a tendência da obesidade infantil. Alguns
locais já mostram resultados. Vamos todos, em nossos papéis, quebrar o ciclo da
obesidade infantil com movimento, equilíbrio e cuidado.