Antes da técnica, o instinto, por que lutar é um caminho de evolução? Essa pergunta nos provoca a olhar para aquela faísca animal que todo ser humano carrega. Desde os primórdios, lutar foi parte da vida, muito antes de inventarmos palavras, livros ou governos, já lutávamos, hoje em dia no tatame, pode-se trabalhar este instinto antigo, mas com regras e significados. Como uma atividade ao mesmo tempo física e filosófica, as artes marciais nos ensinam a domar nossos impulsos.
Vanguarda do Norte: De onde vem o instinto de lutar?
Dr. Ricardo Amaral Filho: O instinto de combate é parte da natureza humana, uma herança biológicade nossos ancestrais. Quando temos uma ameaça, nosso corpo reage automaticamente, o coração acelera, os músculos recebem um jato de energia e estamos prontos e na frente da decisão para atacar ou fugir, a reação de luta ou fuga não precisa ser ensinada, ela está gravada em nosso código genético. Estudos mostram uma predisposição genética para a agressividade, ao longo da evolução, genes que ajudaram nossos antepassados a reagir melhor a perigos foram sendo passados de gerações em gerações. Em outras palavras, o impulso para brigar tem raízes biológicas, ligada aos mecanismos de defesa e sobrevivência da espécie.
Pesquisas antropológicas mostram que, desde a era pré-histórica, onde tem seres humanos, há registros de combates, seja lutando contra animais por sobrevivência, seja disputando recursos com outros humanos, a luta surgiu como resposta direta a desafios do meio ambiente, bem antes de refinarmos habilidades cognitivas mais complexas.
Podemos dizer que lutar é tão antigo quanto o ser humano. Da barbárie à civilização, ideia trabalhada por Edward Tylor, os seres humanos criaram técnicas de luta como expressão natural de sobrevivência, organização social e cultural. Defender e caçar, instinto primário foi base para a evolução da espécie em um mundo de predadores e perigos.
VDN: Por que a luta surgiu antes da linguagem, da escrita ou da política?
Dr. Amaral: Porque lutar foi nossa primeira necessidade de sobrevivência. Antes de existir linguagem, escrita ou política, o ser humano já precisava defender-se, caçar e disputar recursos. Os punhos vieram antes das palavras.
Arqueologia e biologia confirmam isso, ferramentas e armas surgiu milhares de anos antes da escrita, e o comportamento agressivo por território ou proteção de filhos existe em toda a natureza. Só depois, com a linguagem e a cultura, passamos a refletir e amadurecer sobre essa agressividade e criar códigos e regras sociais para controlá-la. Antes disto, lutar era a linguagem universal da vida e o que garantia a existência.
VDN: O que diferencia o lutador do agressor?
Dr. Amaral: O instinto de lutar é universal, o que separa o lutador do agressor é o autocontrole. O agressor age pelo impulso e pela raiva. O lutador canaliza esse instinto dentro de limites técnicos e éticos. Nas artes marciais, aprende-se desde o primeiro dia que luta não é briga, há regras, respeito e propósito. Cumprimentamos o oponente, controladas as ações por regras e existe a hora de parar. O verdadeiro lutador treina para dominar a si mesmo, o agressor é dominado pelas próprias emoções.
Em essência, o lutador busca evolução, o agressor, a superioridade a qualquer custo do outro. É essa consciência que transforma combate em arte e violência em aprendizado.
VDN: Como a arte marcial transforma impulso bruto em ética?
Dr. Amaral: A arte marcial transforma impulso e brutalidade em ética, com regras e sentido ao instinto de lutar. Rituais, regras e disciplina moldam a agressividade gerando autocontrole. O simples ato de cumprimentar antes de treinar já lembra que, no tatame, não se luta para destruir, mas para provar-se e evoluir. Existe uma intencionalidade, entende-se que a verdadeira vitória não é sobre o outro, mas sobre si mesmo! As graduações, a hierarquia e os códigos de conduta funcionam como caminho de evolução e responsabilidade, até a energia que poderia ferir é convertida em treino com caráter e honra.
Em essência, as artes marciais são a forma do humano de civilizar o instinto, transformando a luta em um caminho de crescimento pessoal cultura e contribuição social.
VDN: Por que controlar o corpo ajuda a criança a controlar as emoções?
Dr. Amaral: Porque o corpo é a primeira escola da mente. Nas artes marciais, cada queda, esperar seu momento e cada movimento exigem atenção e disciplina. Estudos mostram que crianças praticantes de luta desenvolvem mais foco, autocontrole e menor agressividade em poucas semanas. Um estudo britânico com crianças de 7 a 11 anos revelou que, após 11 semanas de Taekwondo, elas passaram a controlar melhor os impulsos e a seguir regras com mais facilidade do que colegas da educação física tradicional.
No tatame, o aprendizado é silencioso, e cada um em sua própria velocidade, esperar a vez, cair e levantar, respeitar o colega e controlar a força. Essa vivência transforma energia bruta em confiança, resiliência e empatia. Escolas de jiu-jítsu, judô ou capoeira tem resultados semelhantes, menos indisciplina e até redução de violência escolar.
Quando a criança aprende a comandar o próprio corpo, ela aprende também a governar suas emoções e leva essa habilidade para toda a vida.
VDN: E os adultos: o que o tatame revela sobre nós?
Dr. Amaral: Entrar no tatame é encarar um espelho, digo que é o “microcosmo da vida” longe dos títulos profissionais, da posição social ou da zona de conforto, a luta nos coloca todos de igual para igual e muitas vezes nos coloca diante de nossas limitações.
Vários executivos, doutores e mesmo atletas de fim de semana relatam a humildade adquirida ao serem finalizados por alguém menor ou mais jovem no jiu-jítsu. De fato, uma das primeiras lições para um iniciante adulto é lidar com o ego, “deixe o ego do lado de fora do tatame e da sua vida”, é um ensinamento, ajuda a trocar a mentalidade de ganhar/perder por uma mentalidade de aprendizado e evolução. Estudos sobre psicologia do esporte trazem que praticantes de artes marciais tendem a apresentar menos ansiedade e estresse no dia a dia, justamente por desenvolverem essa capacidade de aceitar falhas e seguir em frente. O tatame ensina a aprender com cada derrota.
A forma como reagimos durante o treino revela traços de nossa personalidade. Se perdemos a calma ao sermos pressionados, se trapaceamos para ganhar, se respeitamos quem nos vence, tudo isso aparece, a luta funciona como um teste de caráter a cada rola, pesquisadores já observaram que, ao longo dos anos, praticantes de artes marciais desenvolvem mais resiliência, autoconfiança e equilíbrio emocional do que a média da população. Não é que o tatame magicamente transforme alguém em santo, mas ele mostra nossas fraquezas e força a trabalhá-las, lembrando que:
Nenhuma arte marcial cria o caráter! Mas pode nos mostrar e cabe a cada um lapidar-se com a capacidade de ser humilde, de ter paciência, de superar medos e de se conectar genuinamente com outras pessoas através do respeito mútuo.
Colocar a fera interior na coleira não significa enfraquecer-se, significa direcionar a força com sabedoria. Quando transformamos agressividade em energia positiva, seja competindo esportivamente ou treinando com amigos, estamos praticando também a arte de sermos humanos melhores. Controlar o corpo é controlar também a mente e o coração. Domar o instinto é a arte de nos tornarmos humanos melhores!
Ricardo Amaral Filho (@amaralfilho)
Médico de Família e Comunidade
Médico do Esporte | Mestre em Educação
White House Jiu-Jitsu | Manauara EC