Hoje te convido a refletir sobre o “silêncio do tatame”. Ali, entre esforços físicos e desafios técnicos, o praticante aprende a silenciar ruídos internos e externos, cultivando foco e presença plena. Apesar do suor e da tensão muscular, o verdadeiro som no tatame é a própria respiração do lutador, enquanto a mente encontra espaço para se esvaziar do caos cotidiano. Nesse ambiente quase meditativo, a mente encontra espaço para refletir sobre seus próprios limites e potencialidades.
Vanguarda do Norte: Dr. Amaral, por que falamos em “silêncio” no tatame, se ali há movimentação intensa?
Dr. Ricardo Amaral Filho: A ideia de silêncio do tatame vem da sensação de foco total que acontece quando estamos concentrados na luta. No momento do combate, nosso cérebro silencia
as preocupações do dia a dia, contas, redes sociais, problemas pessoais, para se
dedicar única e exclusivamente ao que está acontecendo aqui e agora. Nessa hora, o
praticante de Jiu-Jítsu entra em um estado de Flow, semelhante à atenção plena,
percebe cada som da respiração, cada contato no chão, sem espaço para pensamentos
dispersos. Nesse estado de foco absoluto, o lutador experimenta um silêncio interior em
que cada ação se torna clara e intencional, pois a mente está completamente “no jogo”.
VDN: E como a prática do Jiu-Jítsu desenvolve esse foco e presença que o senhor descreve?
Dr. Amaral: Cada treino de Jiu-Jítsu é um exercício de atenção intensa. No tatame, não
dá para praticar pela metade! Toda queda, defesa ou transição exige atenção completa.
Não tem como pensar no almoço enquanto o parceiro está montado em você ou você
mantém a mente no presente, ou abre espaço para ser finalizado. Essa exigência
contínua de atenção faz com que a presença seja levada ao limite. Inclusive, estudos em
artes marciais já observaram ganhos cognitivos relacionados à atenção. Por exemplo,
uma pesquisa constatou que crianças praticantes de artes marciais apresentaram maior
melhora em tarefas de atenção e memória de trabalho do que crianças em atividades
sem esse estímulo cognitivo , sugerindo que qualquer faixa etária se beneficia de
treinos que exigem concentração plena. Em suma, o Jiu-Jítsu funciona como uma
ginástica para a mente focada.
VDN: No meio de um combate, respirar fundo não é fácil. Qual é o papel da respiração consciente nesse cenário?
Dr. Amaral: A respiração é a ponte vital entre corpo e mente. No Jiu-Jítsu aprendemos,
muitas vezes sem perceber, a manter o fôlego sob controle mesmo em situações de
estresse. Respirar de forma consciente sentir o ar entrando e saindo ajuda a manter a
calma quando o coração dispara. Fisiologicamente, expirações longas e profundas
ativam o nervo vago, reduzindo o cortisol (o hormônio do estresse) e ativando o sistema
parassimpático. Isso naturalmente acalma o corpo e clareia a mente. Pesquisas com
atletas de alto rendimento apontam efeitos concretos dessa prática: uma revisão
recente mostrou que a meditação e o mindfulness esportivo melhoram o sono,
aumentam a tolerância à dor, reduzem os níveis de cortisol no sangue e diminuem o
estresse e a ansiedade . Inspirar e expirar conscientemente oferece benefícios reais ao
corpo e à mente sob pressão.
VDN: Durante uma luta, as emoções podem subir à flor da pele. O que o Jiu-Jítsu ensina sobre gerir emoções em situações de pressão?
Dr. Amaral: O Jiu-Jítsu é um grande professor de regulação emocional. No começo, é
comum sentir raiva, medo ou frustração afinal, alguém está tentando te derrubar,
dominar e finalizar! Mas, aos poucos, se percebe que ceder a essas emoções atrapalha a
técnica. Em vez de reagir impulsivamente, ele aprende a transformar aquela energia em
estratégia: respira fundo, “sai de baixo” (um movimento de fuga) e pensa no próximo
passo. Estudos com outras artes marciais já demonstraram isso, práticas regulares
podem reduzir a impulsividade e melhorar o autocontrole, o que está ligado a maior
bem-estar e satisfação pessoal . Em outras palavras, o Jiu-Jítsu ensina que controlar a
si mesmo aumenta a qualidade de vida. Pesquisas ainda mostram que esse aprendizado
vale para as crianças: quem fez 12 semanas de treino de Jiu-Jítsu apresentou redução
significativa em sintomas emocionais e de hiperatividade , o que indica ganhos de
regulação emocional mesmo nos mais jovens.
VDN: Dr. Amaral, como essas habilidades treinadas no tatame se traduzem na vida
cotidiana do praticante?
Dr. Amaral: Com certeza as lições do tatame acompanham a pessoa em todos os
aspectos da vida. O foco treinado no Jiu-Jítsu ajuda a concentrar nas tarefas do
trabalho ou dos estudos, ignorando as distrações. A respiração consciente, por
exemplo, pode ser aplicada antes de uma apresentação ou em momentos de ansiedade
para manter o sangue-frio. De fato, uma revisão recente destacou que o Jiu-Jítsu pode
ser considerado uma intervenção de saúde pública justamente pelo seu impacto
positivo na resiliência mental e na redução de comportamentos agressivos. Assim, quem aprende a controlar o próprio corpo e reagir de forma consciente no tatame tende a desenvolver mais estabilidade emocional fora dele. Em resumo, as habilidades treinadas no tatame (foco, autocontrole e paciência) são ferramentas valiosas de bemestar na vida diária.
VDN: E no caso das crianças e adolescentes que praticam Jiu-Jítsu, quais são os impactos desse desenvolvimento de foco e controle emocional desde cedo?
Dr. Amaral: Para os jovens, o Jiu-Jítsu oferece um aprendizado de vida valioso. Eles
usam toda a energia do corpo para se movimentar e, ao mesmo tempo, aprendem
disciplina, autocontrole e respeito ao adversário. Controlar a impulsividade nas lutas
ajuda a ter mais atenção e disciplina na escola. Como ressaltam pesquisas, crianças que
praticam artes marciais não ganham só aptidão física, mas também melhoram aspectos
cognitivos: por exemplo, melhora de atenção e memória de trabalho foi observada em
alunos que treinam artes marciais . Além disso, até crianças com TDAH mostraram
ganho no controle emocional um estudo verificou que 12 semanas de Jiu-Jítsu
reduziram sintomas emocionais e comportamentais em jovens. Em resumo, os
pequenos faixa-brancas aprendem a ouvir mais o próprio corpo e as emoções,
construindo autoconfiança e disciplina que os acompanham fora do tatame.
VDN: Para concluir, Dr. Amaral, qual recado final o senhor deixa aos leitores sobre o poder desse silêncio interior que o Jiu-Jítsu proporciona?
Dr. Amaral: Eu diria que o maior adversário a ser vencido no tatame e na vida muitas
vezes está dentro de nós mesmos, nossos medos, distrações e inseguranças. O JiuJítsu nos ensina, luta após luta, que podemos treinar para neutralizar esse ruído interno
e ouvir uma voz maior, a da nossa própria consciência clara e focada. Quando cultivamos
esse silêncio interior, ganhamos a capacidade de agir com clareza sob pressão e viver o
dia a dia com mais equilíbrio. Gosto de pensar: “quem domina o silêncio interior nunca
se perde”, e essa é uma frase que resume bem o que buscamos com a prática do JiuJítsu.
Junto do movimento, suor e às transições rápidas, o Jiu-Jítsu nos oferece algo que está
cada vez mais raro na vida moderna, a chance de ouvir a própria mente sem
interferência. Cada técnica, cada defesa e cada respiração profunda treinam o corpo,
mas, sobretudo, educam a atenção, a calma e a capacidade de permanecer inteiro
mesmo quando tudo ao redor parece caótico.
É por isso que tantos praticantes relatam sentir-se “renovados” após um treino. Não é só o exercício físico; é o encontro com um estado mental em que o excesso de pensamentos se aquieta e a consciência se afina. Esse silêncio interior construído aos poucos, repetição após repetição fortalece a saúde mental, aprimora a presença e amplia a resiliência.
E talvez essa seja uma das maiores lições que obtemos do Jiu-Jítsu: aprender a respirar onde antes havia tensão, encontrar foco onde antes havia ruído e agir com clareza mesmo sob pressão.
Porque quem treina a escutar a própria mente no tatame leva essa habilidade para a vida para o trabalho, para a família, para os desafios invisíveis do cotidiano.
No final, o Jiu-Jítsu nos ensina que o verdadeiro campeonato é interno. E que, com silêncio, presença e intenção, qualquer um pode tornar-se mais forte, mais consciente e dono de si mesmo.

