A obesidade infantil ultrapassa a desnutrição e acende alerta global e nacional!
Em pleno século 21, o mundo presencia uma inversão preocupante no perfil nutricional das crianças. Hoje, há mais crianças e adolescentes com obesidade do que sofrendo de desnutrição moderada ou grave, um marco histórico que destaca a obesidade infantil como o principal problema de nutrição global, os novos relatórios da UNICEF e da Organização Mundial da Saúde (OMS) confirmam a tendência: em 2022, cerca de 391 milhões de jovens de 5 a 19 anos estavam acima do peso, e 163 milhões eram obesos, equivale a quase 1 em cada 10 crianças com obesidade, taxa que superou pela primeira vez a da desnutrição infantil em 2025.
No Brasil, a mudança ocorreu ainda antes, a obesidade infantil já havia ultrapassado a desnutrição desde o ano 2000, e vem crescendo rapidamente, a porcentagem de crianças brasileiras obesas triplicou de 5% em 2000 para 15% em 2022, enquanto a desnutrição aguda recuou de 4% para 3% . No total, mais de um terço (36%) das crianças e adolescentes brasileiros de 5 a 19 anos apresentavam excesso de peso em 2022 um indicativo claro de que o sobrepeso juvenil já é um problema.
Em Manaus e na região Norte, tradicionalmente mais associadas à insegurança alimentar, observa-se essa transição nutricional dados locais apontam queda na desnutrição infantil, porém aumento no peso excessivo. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (Semsa), 5,24% das crianças de 2 a 5 anos atendidas na rede municipal já apresentam peso acima do ideal para a idade. “Estamos deixando de ter crianças em desnutrição, mas, ao invés de se manterem no peso adequado, elas já exibem peso elevado para a idade”, alerta Dandara Bezerra, chefe do Núcleo de Alimentação e Nutrição da Semsa. Em outras palavras, saímos da fome direto para a obesidade um cenário alarmante que exige ação imediata.
Tendências globais mostram a obesidade infantil ultrapassando a desnutrição como a forma mais comum de má nutrição entre crianças e adolescentes de 5 a 19 anos. Em 2025, marcou o ponto em que a obesidade 9,4% supera a desnutrição 9,2% mundial. A projeção até 2030 indica um aumento maior ainda da obesidade.
Sedentarismo, telas e ultraprocessados: os novos vilões da infância
Como chegamos a esse ponto em que o excesso de peso infantil se tornou tão comum Especialistas explicam que a obesidade infantil é uma condição multifatorial, resultado de diversos elementos dos hábitos modernos entre os principais fatores que impulsionam o aumento da obesidade em crianças, destacam-se:
- Sedentarismo e falta de atividade física: As crianças estão se exercitando menos do que o recomendado. A OMS orienta pelo menos 60 minutos diários de atividade física moderada a vigorosa para crianças e adolescentes. Brincadeiras nas ruas e práticas esportivas mudaram para atividades sedentárias, reduzindo os níveis de aptidão física e desenvolvimento motor das novas gerações. O resultado é um “letramento motor” baixo crianças com menos habilidades motoras básicas, pouca coordenação e resistência física insuficiente para manter um estilo de vida ativo.
- Tempo de tela excessivo: Televisão, videogames, celulares e tablets competem com o brincadeiras, horas a fio em frente às telas não apenas significam menos movimento. Estudos revelam que o uso excessivo de dispositivos eletrônicos contribui para o sedentarismo e impacta o metabolismo infantil. Segundo a OMS, crianças menores de 2 anos não deveriam ter nenhum contato com telas.
- Alimentação rica em ultraprocessados: Biscoitos, salgadinhos, refrigerantes e fastfood presença constante no cardápio infantil. Os alimentos ultraprocessados, com açúcar, gorduras não saudáveis, sal e aditivos, substituem cada vez mais as frutas, verduras e refeições caseiras na dieta das crianças . Essa mudança alimentar tem efeitos diretos no ganho de peso e até no cérebro, o consumo precoce de ultraprocessados pode causar alterações permanentes no hipotálamo, área que regula a saciedade, dificultando o controle do apetite ao longo da vida.
- Padrão de sono inadequado: Sono insuficiente ou irregular é outro fator associado ao ganho de peso em crianças. Crianças com rotinas de sono perturbadas tendem a apresentar mais apetite por alimentos calóricos e menos disposição para atividades físicas, criando um ciclo negativo para o peso.
- Falta de espaços de lazer seguros: A urbanização e a violência em algumas cidades limitaram as oportunidades de brincadeiras ao ar livre. Parquinhos, praças e quadras esportivas nem sempre estão acessíveis ou seguros, especialmente nas periferias . Sem local para correr, pedalar ou jogar bola, muitas crianças acabam em ambientes fechados frequentemente sedentários. Essa “desigualdade de lazer” contribui para disparidades na saúde: onde há menos oferta de infraestrutura para esportes e recreação, maiores são os índices de obesidade infantil.
- Ambientes escolares pouco estruturados: A escola, que deveria ser aliada na promoção de hábitos saudáveis, nem sempre cumpre esse papel. Falta de áreas adequadas para educação física, recreios curtos e cantinas repletas de salgadinhos e doces criam um ambiente pouco propício ao movimento e à boa alimentação. Em muitos casos, a carga horária de Educação Física foi reduzida e a disciplina é tratada como de importância secundária uma tendência preocupante.
Cada um desses fatores cria um ambiente obesogênico, onde é mais fácil ganhar peso do que manter-se saudável. Como explica a nutricionista Gláucia Carielo, o problema vai além da “falta de vontade”, vivemos em contextos que dificultam escolhas saudáveis, com pouca oferta de alimentos frescos e espaços para brincar. Se nada mudar, teremos uma geração com alto risco de doenças metabólicas e emocionais ligadas à obesidade infantil.
Educação Física escolar: aliada crucial na prevenção
Uma ferramenta se destaca pela capacidade de prevenir a obesidade e promover saúde desde cedo: a Educação Física na escola. A aula de Educação Física vai muito além de “brincar” ou “jogar bola” ela é fundamental para o desenvolvimento integral das crianças, englobando dimensões físicas, cognitivas, sociais e emocionais. Quando bem conduzida, a disciplina:
- Combate o sedentarismo e melhora a aptidão física: A participação regular em aulas de Educação Física de qualidade melhora a saúde corporal, ajudando no condicionamento cardiorrespiratório, no fortalecimento muscular e no gasto calórico dos alunos . Isso reduz diretamente o risco de ganho de peso excessivo e diminui comportamentos sedentários que levam à obesidade.
- Ensina hábitos e conhecimento para uma vida ativa: Mais do que mexer o corpo, a Educação Física ensina a compreender o valor do exercício. Conselho Federal de Educação Física, “a prática regular de atividade física, que se aprende nas aulas de Educação Física, tem efeitos que vão muito além da escola”. É um investimento em saúde futura.
- Identifica e inclui todas as crianças: Professores qualificados de Educação Física têm o preparo para adaptar atividades a diferentes perfis da criança acima do peso, que às vezes sente dificuldades ou vergonha de participar, ao aluno com alguma limitação física. Ao envolver todos de forma positiva, a aula promove inclusão, melhora a autoestima e reduz o bullying relacionado ao peso ou habilidade motora. Isso é crucial, pois crianças obesas muitas vezes sofrem preconceito e isolamento, o que pode agravar quadros de depressão ou ansiedade. A Educação Física bem orientada cria um ambiente de apoio, no qual cada conquista (correr um pouco mais, aprender um novo jogo) conta e motiva.
- Desenvolve habilidades socioemocionais e cognitivas: Movimentar o corpo também exercita a mente e as emoções. Nas aulas, os alunos aprendem sobre trabalho em equipe, disciplina, superação de desafios, respeito a regras e liderança. Estudos indicam que a prática física regular está associada a melhor desempenho acadêmico e à criação de resiliência socioemocional.
Em um mundo dominado por telas e isolamento, a quadra escolar pode ser um dos poucos espaços onde a criança interage de verdade, lida com vitórias e derrotas, controla impulsos e desenvolve empatia. Tudo isso contribui para uma infância mais saudável em sentido amplo corpo e mente.
A Escola é talvez o único lugar capaz de enfrentar de forma sistemática o problema global do baixo letramento motor e da obesidade infantil. É por isso que a Educação Física precisa ser tratada como prioridade nas políticas educacionais, e não como um detalhe opcional!
Infelizmente, nem sempre essa importância tem sido reconhecida pelas autoridades pelo contrário, nos últimos anos vimos retrocessos que ameaçam enfraquecer essa disciplina.
Quando a solução é enfraquecida: redução de aulas e profissionais desqualificados
Apesar de todas as evidências de que a Educação Física escolar é uma aliada contra a obesidade infantil, verificamos movimentos que contrariam essa lógica no Brasil. Um exemplo foi a reforma do Ensino Médio em 2017, que abriu brechas para a redução da carga horária de Educação Física e até a não obrigatoriedade da disciplina para alguns alunos.
Especialistas alertam que diminuir o tempo de aula de Educação Física traz prejuízos sérios ao desenvolvimento pleno dos estudantes. Não existe “milagre” para criar hábitos saudáveis, as crianças precisam vivenciar atividades regularmente, orientadas por quem entende do assunto. Cortar aulas significa oportunidades a menos de movimento, aprendizado e orientação, justamente em um momento onde elas já se movem pouco. Cada aula é um passo na luta contra o sedentarismo e a obesidade.
Paralelamente, discute-se no Congresso Nacional o Projeto de Lei PL 2062/2023, que gerou forte reação de profissionais de saúde e educação. Esse PL propõe tornar dispensável o registro nos Conselhos Regionais de Educação Física (CREFs) para atuação de professores nas escolas na prática, permitir que pessoas não licenciadas ou não registradas no sistema CONFEF/CREF lecionem Educação Física escolar.
Os defensores do projeto alegam desburocratização e redução de custos para docentes,
mas entidades como o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF) têm se
posicionado firmemente contra a medida, em defesa da qualidade do ensino e da
segurança das crianças. “Não podemos abrir mão da qualidade, da segurança e da
responsabilidade profissional!”, manifestou-se o CONFEF em ações públicas contra o
PL, enfatizando que profissionais não habilitados colocam em risco o desenvolvimento e
a integridade física dos alunos.
Sem a exigência de formação adequada e registro, teme-se a abertura para que indivíduos sem os conhecimentos pedagógicos e científicos necessários assumam as aulas o que poderia levar desde abordagens ineficazes até riscos de acidentes ou práticas inadequadas que prejudiquem a saúde infantil. Educação Física na escola é coisa séria e deve ser conduzida por profissionais
capacitados, aptos a avaliar condições de saúde, respeitar limites e fomentar uma
cultura de atividade física prazerosa.
A medida pode desvalorizar a profissão e afastar bons profissionais da carreira docente, justamente quando mais precisamos deles. No momento em que enfrentamos uma emergência de saúde como a obesidade infantil, enfraquecer a Educação Física escolar seja reduzindo aulas, seja desregulamentando a profissão é andar na contramão da solução!
Diante dos desafios expostos, fica claro que combater a obesidade infantil requer um esforço coletivo envolvendo escolas, famílias, governos e a sociedade como um todo, é preciso uma rede de proteção e promoção da saúde da criança. Cada setor tem um papel fundamental:
- Educação fortalecida: As escolas devem colocar a saúde e o movimento no centro de suas prioridades. Isso significa garantir Educação Física em todas as etapas de ensino, com carga horária adequada e currículo voltado ao letramento motor e à diversão ativa. Significa também implementar políticas escolares saudáveis, desde cantinas que ofereçam alimentos nutritivos até pátios e parques convidativos à brincadeira. Programas de educação alimentar, hortas escolares e integração da família nas atividades esportivas podem potencializar resultados.
- Profissionais capacitados: Nada substitui a presença de um professor de Educação Física qualificado orientando as crianças. Investir na formação continuada desses docentes e valorizar sua carreira é investir na saúde das próximas gerações. Governos e redes de ensino precisam contratar apenas profissionais licenciados e registrados, assegurando um padrão de qualidade nacional.
- Famílias atentas e participativas: Pais, mães e responsáveis são os primeiros exemplos de hábitos para uma criança. Pequenas mudanças no lar, como estabelecer horários regulares para dormir e substituir bebidas açucaradas por água, fazem grande diferença. Famílias unidas também podem cobrar melhorias na comunidade e na escola, formando uma voz ativa por ambientes mais saudáveis.
- Comunidades e poder público mobilizados: Prefeituras, governos estaduais e União precisam encarar a obesidade infantil como prioridade de saúde pública e agir em várias frentes. Políticas públicas sérias e integradas são urgentes da restrição da publicidade de alimentos não saudáveis voltada às crianças, passando por taxação de bebidas açucaradas, até a criação de espaços seguros para atividades físicas nos bairros.
Campanhas de conscientização, como a promovida pelo Ministério da Saúde no Dia da Conscientização Contra a Obesidade Mórbida Infantil ajudam a informar, mas é preciso ir além, é fundamental que haja orçamento e continuidade em programas de nutrição e atividade física na atenção básica de saúde, nas escolas e na mídia.
A sociedade civil, pode contribuir com projetos comunitários uma escolinha de esportes gratuita, um mutirão para revitalizar a pracinha local, grupos de caminhada mostrando que todos podemos ser parte da solução.
Experiências bem-sucedidas em algumas localidades como a redução do excesso de peso infantil no Amazonas entre crianças menores de 5 anos, fruto de políticas e trabalho da atenção primária em saúde, mostram que quando se investe no caminho certo, os resultados vêm. Vamos ampliar e acelerar essas iniciativas!
A coluna Saúde e Movimento reforça o convite: vamos quebrar o ciclo da obesidade infantil com movimento, equilíbrio e cuidado. Cada aula de Educação Física, cada parquinho construído, cada decisão de trocar o ultraprocessado por comida de verdade é um passo rumo a uma geração mais saudável. Que possamos olhar para nossas crianças em Manaus, no Brasil e no mundo e garantir que elas tenham a chance de crescer fortes, ativas e capazes de realizar seus sonhos, livres tanto da fome quanto da obesidade. A luta contra a obesidade infantil já começou, e depende do empenho de um.
Dr. Ricardo Amaral Filho – @amaralfilho
Médico de Família e Comunidade
Médico do Esporte | Mestre em Educação