Você dorme com o celular na mão? Então talvez esteja lutando uma guerra silenciosa contra o sono e perdendo antes mesmo de fechar os olhos.
Para atletas seja um campeão profissional ou um lutador de fim de semana esse inimigo digital pode ser o golpe mais traiçoeiro contra sua performance.
Vanguarda do Norte: O celular realmente pode causar insônia?
Dr. Ricardo Amaral Filho: Sim. A luz azul emitida pelas telas suprime a produção de melatonina, que é o hormônio do sono, enganando o cérebro a “pensar” que ainda não é hora de dormir estudos comprovaram que pessoas que usam celulares antes de dormir demoram mais para adormecer, têm pior qualidade de sono e acordam menos descansados. Quem faz leitura em um tablet à noite, em vez de um livro de papel, levam mais tempo para pegar no sono e apresentaram melatonina noturna significativamente menor, além de um atraso no relógio biológico e menor alerta na manhã seguinte da mesma forma, encarar por horas a luz intensa de um monitor LED no fim da noite inibe a elevação normal da melatonina noturna e reduziu a sonolência fisiológica, mantendo o cérebro em estado de alerta artificial pode sim induzir um estado de insônia ou sono leve.
Além da luz, há o fator do estimulo mental: mensagens, notificações e rolagem infinita de conteúdo mantêm a mente ligada justamente quando deveríamos desligar. O resultado é um estado de vigília prolongado você está exausto, mas “sem sono”. Em resumo, o hábito de usar o celular na cama é um oponente do sono, atrasando o início do descanso, reduzindo a profundidade do sono e até encurtando sua duração real.
VDN: Por que o sono é tão vital para a performance e a saúde?
Dr. Amaral: Dormir bem é tão importante quanto treinar. Durante o sono, especialmente nas fases REM e profundo (N3), o corpo realiza a “manutenção” necessária para a alta performance física e mental:
– Recuperação muscular: É no sono profundo que o corpo libera hormônio do crescimento (GH) e repara microlesões musculares causadas pelos treinos, facilitando ganho de força e recuperação mais rápida.
– Consolidação de memória motora: Durante o sono REM, o cérebro consolida as técnicas e movimentos praticados; é como “repetir mentalmente” o treino, refinando a coordenação e a memória muscular.
– Equilíbrio hormonal: Uma boa noite de sono mantém altos os níveis de testosterona e GH, hormônios anabólicos cruciais para performance, e controla o cortisol, hormônio do estresse. Com privação de sono, isso se inverte – estudos mostram que a falta de descanso pode derrubar a testosterona em cerca de 20–30% e elevar o cortisol em mais de 20% em poucos dias , um desequilíbrio que prejudica ganho de massa, aumenta a gordura e afeta o humor.
Não surpreende que atletas que dormem mais tenham melhores resultados. Uma pesquisa em jogadores de basquete universitário pediu que eles estendessem o sono para ~10 horas por noite durante várias semanas. Os resultados foram impressionantes: os atletas ficaram mais rápidos nos sprints (melhora de 16,2s para 15,5s em corrida de 282 pés) e mais precisos nos arremessos, com aumento de 9% nos acertos de lance livre e 3 pontos reflexos e tempo de reação melhoraram, e a sonolência diurna despencou. Os jogadores relataram estar mais vigorosos, menos fatigados e em melhor estado de espírito nos treinos e jogos. Sono extra pode ser desempenho extra.
Quem negligencia o sono paga o preço: sem sono adequado, acumula-se fadiga, os reflexos ficam mais lentos, a tomada de decisão piora e até o sistema imunológico enfraquece. Isso significa maior risco de adoecer, de overtraining e claro, queda de performance nos momentos decisivos. Você não evolui durante o treino evolui durante o descanso. O sono de qualidade é o treino invisível que torna todo o esforço dos treinos realmente efetivo.
VDN: Redes sociais antes de dormir pioram a insônia?
Dr. Amaral: Sem dúvida. O problema não é só a luz da tela, mas também o tsunami de estímulos cognitivos e emocionais que as redes sociais trazem. Pense nas notificações, nas notícias acaloradas, nas comparações e cobranças que vemos no feed tudo isso acende a ansiedade justamente à noite, quando deveríamos desacelerar. Pesquisas com atletas jovens mostraram que o uso passivo de redes (ficar apenas rolando e espiando a vida alheia, sem interagir) está ligado a aumentar a ansiedade e diminuir a sensação de bem-estar isso ocorre em boa parte devido às comparações sociais: ver posts de adversários treinando ou aquela sequência de vitórias de outros pode gerar uma angústia de “estou ficando para trás”, alimentando pensamentos negativos justamente na hora de dormir.
Antes de competições, essa influência é ainda mais crítica e grave. É tentador checar o Instagram ou outra rede na véspera de uma luta importante, mas isso frequentemente aumenta a tensão pré-competitiva e atrapalha o foco no descanso. Comentários online sejam críticas de haters ou expectativas de fãs podem virar combustível para uma mente já acelerada pela adrenalina pré-evento. Em vez de relaxar, o atleta fica ruminando respostas, revendo cenários, com a mente agitada no momento de desligar.
Do ponto de vista fisiológico, esse hábito de checar redes à noite contribui para o que os especialistas chamam de “ativação cognitiva pré-sono”. Basicamente, o cérebro fica ligado no 220V pensamentos acelerados, emoções à flor da pele o oposto do estado relaxado necessário para adormecer. Um estudo recente destacou que o “arousal” cognitivo e as comparações negativas nas redes sociais são mecanismos-chave ligando o uso de mídia social a pior qualidade de sono . Ou seja, mexer no TikTok/Instagram antes de dormir é uma receita para insônia induzida: você mesmo provoca um estado de alerta mental que dificulta pegar no sono.
Redes sociais à noite agem como um golpe mental contra o sono. Em vez de contar carneirinhos, você conta curtidas, DMs e problemas do mundo e seu cérebro permanece em combate, não encontra paz para dormir. Desconectar-se das redes no período noturno é crucial para evitar esse tipo de insônia pela ansiedade digital.
VDN: O celular na cama atrapalha mesmo quem acha que “dorme rápido”?
Dr. Amaral: Sim, mesmo que você apague assim que encosta a cabeça no travesseiro, se
esteve no celular até minutos antes, a qualidade do seu sono provavelmente será pior.
Muita gente pensa: “Tenho sono pesado, posso mexer no celular que ainda durmo feito
uma pedra.” Infelizmente, os efeitos nem sempre são percebidos conscientemente, mas
aparecem em nível fisiológico. A luz azul e a estimulação mental do celular reduzem as
fases restauradoras do sono, levando a microdespertares (breves acordadas ao longo
da noite que você nem lembra) e a um sono menos profundo.
Estudos revelam esse impacto “invisível”. Na pesquisa de Chang et al., embora os
participantes tenham eventualmente adormecido depois de usar dispositivos, aqueles
expostos à luz da tela tiveram menos sono REM (fase dos sonhos) durante a noite, em
comparação com quando não usaram tela o sono REM é crucial para a cognição e
equilíbrio emocional; reduzi-lo significa acordar menos recuperado mentalmente. Além
disso, os mesmos participantes apresentaram menor alerta e mais sonolência na manhã
seguinte, apesar de acharem que dormiram o suficiente . Ou seja, mesmo dormindo a
mesma quantidade de horas, o sono mediado pelo celular foi mais “leve” e fragmentado,
resultando em pior desempenho matinal.
Outra armadilha é que o conteúdo visto antes de dormir infiltra-se no seu descanso.
Notificações não lidas, aquela mensagem que você viu mas não respondeu, o vídeo de
luta que você assistiu tudo isso pode manter seu cérebro trabalhando nos bastidores
durante a noite. Você pode cair no sono rápido, mas não entra tão fundo nas fases 3 e
REM, ou permanece nelas por menos tempo do que precisaria. Sem falar que muitos
esquecem de silenciar o aparelho: pings de notificações ou o brilho da tela acendendo
no criado-mudo podem interromper ciclos de sono sem um despertar completo, mas
suficientes para tirar você da fase profunda.
O resultado prático de dormir conectado aparece no dia seguinte: reflexos ligeiramente
mais lentos, sensação de “cabeça pesada” ao acordar, bocejos incontroláveis no
aquecimento matinal e mal humor. Quem treina de manhã cedo com sono de má
qualidade corre mais risco de erros bobos ou acidentes. E mesmo quem “se sente bem”
pode não render o máximo porque o corpo não atingiu o nível de recuperação ideal é
como lutar com a barra de energia pela metade logo no início do round. Portanto, não se
engane: se o celular fez parte da sua rotina até instantes antes de pegar no sono, há
grandes chances de que ele tenha roubado parte da profundidade e dos benefícios do
seu descanso, ainda que você não perceba imediatamente.
VDN: Qual a relação entre insônia induzida por celular e risco de lesões?
Dr. Amaral: A relação é direta e preocupante: menos sono = mais lesões. Atletas que
dormem mal cronicamente (seja por insônia, seja por virar noites no celular) colocam o
corpo em um estado de recuperação incompleta. Imagine que cada noite mal dormida é
um round a mais apanhando do desgaste você acumula microdanos não reparados,
reduz sua coordenação motora fina e ainda por cima diminui a atenção. Assim, a
probabilidade de se machucar no treino ou competição dispara.
Estudos epidemiológicos com esportistas mostram números alarmantes. Em jovens
atletas, aqueles que dormem menos que 8 horas por noite têm cerca de 1,7 vezes mais
chances de sofrer uma lesão em comparação aos que dormem pelo menos 8 horas. Em
um estudo de acompanhamento, 65% dos atletas do grupo de sono curto (<8h) tiveram
contusões ao longo de uma temporada, contra apenas 31% entre os dorminhocos o sono
foi o fator de risco mais forte para lesão, mais do que horas de treino ou histórico
esportivo ou seja, a privação de sono crônica atua como um “ataque oculto” ao seu
físico, tornando músculos e articulações mais vulneráveis.
Por quê isso acontece? Primeiro, a recuperação tecidual fica defasada: o corpo não tem
tempo suficiente para regenerar fibras musculares, tendões e ligamentos. Pequenas
inflamações não são totalmente resolvidas e podem virar lesões maiores com uso
repetitivo. Segundo, o equilíbrio neuromuscular piora a pessoa cansada tem reflexos
lentos, tempos de reação prolongados e coordenação motora prejudicada. Estudos
confirmam que a falta de sono leva a desajuste na coordenação e atraso nos reflexos,
aumentando o risco de entorses, torções e choques inesperados . Pense em um lutador
sonolento: ele reage um milésimo de segundo mais tarde a um golpe é o suficiente para
tomar um knockdown que normalmente evitaria. Da mesma forma, na luta agarrada, a
falta de precisão aumenta chances de movimentações erradas que resultam em lesões
articulares.
O cansaço gera desatenção: um atleta privado de sono pode pisar em falso, calcular mal
uma distância ou se posicionar de forma descuidada, abrindo brecha para acidentes. Há
também a questão hormonal já citada níveis altos de cortisol (por estresse de sono
ruim) podem atrasar a cicatrização de microlesões e enfraquecer ossos e músculos ao
longo do tempo.
Estudos com jogadores de futebol americano e basquete profissional confirmam que
períodos de calendário mais intensos (viagens, jogos noturnos seguidos que perturbam
o sono) vêm acompanhados de picos nos índices de lesão reportados. Atletas e
preparadores físicos sabem disso empiricamente: é comum atribuir uma lesão
inesperada à “semana de noites mal dormidas” antes dela. Em suma, a insônia incluindo
a provocada pelo uso do celular sabotam o principal momento de recuperação do corpo.
Sem esse “pit stop” adequado, você entra em jogo desgastado, com reflexos lentos e
estrutura fragilizada, o que é uma receita para contusões. Proteger o sono é também se
proteger contra lesões, garantindo que você suba no tatame ou ringue com o corpo em
condições ideais, não com peças soltas prestes a quebrar.
VDN: Existe diferença entre usar o celular para relaxar (música, meditação) e para redes
sociais/jogos?
Dr. Amaral: Sim, há usos do celular que podem ajudar no sono e outros que claramente
atrapalham. Tudo depende de como e com que intenção você utiliza o aparelho antes de
dormir. Podemos pensar em dois tipos de uso: o facilitador (positivo/intencional) versus
o debilitante (negativo/passivo).
Uso intencional e positivo: Aqui entram, por exemplo, aplicativos de meditação guiada,
músicas relaxantes ou sons da natureza, e até mesmo diários do sono ou exercícios de
respiração pelo celular. Quando você escolhe usar o aparelho deliberadamente para algo
calmante como ouvir uma meditação do Headspace ou uma playlist de white noise, o
celular torna-se uma ferramenta para desacelerar a mente. Esse uso ativa mecanismos
de autorregulação, ajudando a reduzir a ansiedade e preparando o corpo para dormir.
Muitos atletas, inclusive, adotam rotinas de mindfulness ou hipnose do sono via apps,
relatando melhora na qualidade do descanso. Nesses casos, a tela geralmente fica
desligada (ou virada para baixo), e o aparelho funciona mais como um “tocador de áudio
zen”. O potencial estressor do celular é convertido em aliado relaxante.
Uso passivo ou estimulante (negativo): É o clássico “dar uma olhadinha no Insta” que
vira 1 hora de rolagem infinita, ou ficar jogando partidas online agitadas antes de
dormir. Aqui o celular deixa de ser ferramenta e vira tentação/distração, mantendo você
acordado mais tempo que o planejado e estimulando o cérebro. O feed das redes sociais
nunca acaba e nosso cérebro vai liberando doses de dopamina a cada novidade, nos
deixando viciados e alertas. Jogos eletrônicos ou vídeos empolgantes (seja uma luta do
UFC ou um clipe musical) também elevam os níveis de adrenalina e engajamento
cognitivo, o oposto do relaxamento necessário. Esse uso debilitante do celular costuma
ser compulsivo e sem objetivo claro (“só mais um videozinho…”), gerando stress e
dispersão mental . Estudos qualitativos com atletas universitários descreveram
exatamente essa dicotomia: muitos relataram que o smartphone tanto os ajuda a se
organizar e descontrair (aspecto positivo) quanto os distrai e estressa (aspecto
negativo) um relacionamento complicado que depende do uso que se faz dele . Os
achados reforçam que existe um contínuo entre o uso bom e ruim, e não apenas “celular
é sempre vilão ou sempre mocinho” . Em outras palavras, assistir a uma aula de
alongamento ou meditação pelo celular pode ser benéfico, mas maratonar TikTok
provavelmente não será.
VDN: O que um lutador pode fazer para blindar seu sono do celular?
Dr. Amaral: Estratégias práticas que um atleta pode adotar para proteger seu sono, aqui
vão algumas recomendações de especialistas em sono e performance:
Toque de recolher digital: Estabeleça um horário limite para o uso de dispositivos antes
de dormir. Idealmente, de 1 a 2 horas antes do horário de deitar, nada de celular ou telas
intensas use esse período para rituais calmantes offline (tomar um banho morno,
preparar o equipamento para o dia seguinte, conversar com família/amigos, etc.). Essa
distância do mundo digital ajuda seu cérebro a ir desligando do modo alerta.
Use filtros de luz noturna: Ative o modo noturno do celular (filtro de luz azul) após certo
horário da noite, ou use aplicativos/óculos bloqueadores de luz azul. Isso reduz a
emissão daquele espectro mais prejudicial ao sono. Não é uma solução mágica o ideal
ainda é não usar a tela mas se for indispensável responder uma mensagem tarde, pelo
menos a luz estará menos agressiva aos seus hormônios.
Não fazer uso do celular na cama (ou no quarto): Torne o ambiente de dormir sagrado e
livre de tecnologia. Uma dica simples: carregue o celular fora do quarto, por exemplo na
sala ou cozinha. Assim você elimina a tentação de “só dar mais uma olhadinha” caso
acorde de madrugada, e evita que notificações luminosas/apitos interrompam seu sono.
Se você usa o celular como despertador, considere comprar um despertador simples ou
usar uma smartband silenciosa melhor do que ter o smartphone na cabeceira cutucando
seu subconsciente.
Rotina de relaxamento offline: Desenvolva hábitos que acalmem seu corpo e mente
antes de dormir sem depender de eletrônicos. Pode ser ler algumas páginas de um livro
(de papel) leve, fazer exercícios de respiração profunda, alongamentos suaves ou
meditação. Alguns atletas gostam de um diário da gratidão ou planejamento do próximo
dia no papel tudo isso tira a carga da mente e sinaliza para o cérebro que é hora de
repouso. Ritualize esse processo todas as noites, assim como você tem ritual de
aquecimento antes do treino. Consistência é chave para condicionar seu corpo a relaxar.
Ambiente propício: Mantenha o quarto escuro, silencioso e fresco. Se possível, deixe o
modo Não Perturbe ativado no celular para não ouvir notificações nem vibrações. Uma
boa dica é investir em cortinas blackout ou máscara de olho e tampões de ouvido, se
necessário, para minimizar quaisquer interrupções externas já que as internas (como o
celular) você vai controlar.
Exponha-se à luz do dia de manhã: Parece contraintuitivo falar de luz agora, mas pegar luz solar logo ao acordar (nem que seja 10 minutos ao ar livre) ajusta seu relógio biológico, tornando mais fácil sentir sono na hora certa à noite. Luz diurna forte inibe melatonina durante o dia e ajuda a liberá-la no horário correto à noite. Isso, combinado com redução de luz artificial à noite, regula seu ciclo sono-vigília de forma saudável.
O celular é um companheiro inseparável da vida moderna, mas também pode ser o maior ladrão do seu sono. Para atletas de jiu-jítsu, MMA, boxe ou qualquer modalidade, isso significa menos recuperação, mais fadiga e maior risco de derrota antes mesmo do combate.
O sono é o treino invisível protegê-lo é um diferencial entre vencer e perder.