A imagem é quase um símbolo: lutadores de Jiu-Jítsu, judô, wrestling ou MMA muitas vezes exibem uma orelha grossa, endurecida e cheia de saliências. Popularmente conhecida como “orelha em couve-flor”, essa deformidade chama atenção de quem observa os tatames e levanta muitas dúvidas. Afinal, o que é essa lesão, por que acontece e como evitá-la? A seguir, respondemos às principais perguntas com base em evidências médicas e na experiência de anos atendendo atletas de artes marciais.
Vanguarda do Norte: O que é a “orelha em couve-flor”?
Dr. Ricardo Amaral Filho: É uma deformidade da cartilagem auricular provocada por traumas repetidos.
Quando a orelha sofre pancadas ou atrito intenso, pequenos vasos sanguíneos se rompem e forma-se um hematoma, um acúmulo de sangue entre a pele e a cartilagem.
Se esse hematoma não for drenado precocemente, o sangue fica estagnado e coagula; a cartilagem perde aporte sanguíneo e pode necrosar, e o organismo reage formando tecido fibroso e nova cartilagem (fibrocartilagem) no local . Com isso, a orelha perde seu contorno natural e adquire um aspecto inchado, duro e irregular que lembra a superfície de uma couve-flor.
VDN: Por que é tão comum em esportes de luta?
Dr. Amaral: A estrutura da orelha contribui para essa vulnerabilidade: a aurícula é composta de cartilagem revestida por pele fina e com pouco acolchoamento de gordura, o que oferece pouca proteção contra impactos. No Jiu-Jítsu, wrestling e judô, há atrito constante da cabeça contra o tatame, o quimono ou o corpo do adversário, além de impactos em quedas, raspagens e disputas de pegada. Cada microtrauma pode parecer inofensivo isoladamente, mas a repetição de forças de cisalhamento rompe vasos sanguíneos e desencadeia o mesmo processo inflamatório de um trauma maior.
Atletas que treinam com alta frequência, participam de rolas intensos ou adotam um estilo de jogo com muito controle de cabeça ficam especialmente vulneráveis. De fato, estudos mostram que a prevalência de orelha em couve-flor aumenta nos níveis competitivos mais altos, em um levantamento com lutadores de elite, 84% dos atletas masculinos apresentavam deformidades auriculares.
VDN: A lesão traz riscos além da estética?
Dr. Amaral: Sim. Mesmo que o incômodo visual seja o que mais chame atenção, a orelha em couve-flor não é apenas um problema estético. Se o hematoma não é tratado, podem ocorrer:
– Infecção: o acúmulo de sangue é um meio ideal para bactérias. Uma infecção da cartilagem (pericondrite/abscesso) pode exigir antibióticos ou até intervenção cirúrgica.
– Perda auditiva parcial: em casos graves, a deformidade e inflamação podem se estender até o canal auditivo externo, causando sua obstrução e comprometendo a audição.
– Dor e sensibilidade crônica: o tecido cicatricial endurecido pode permanecer dolorido por semanas ou meses. Quase todos os atletas com orelha em couve-flor relatam algum grau de dor ou desconforto persistente.
A conduta correta é procurar atendimento médico logo após o aparecimento de inchaço ou dor na orelha.
VDN: Como é o tratamento do hematoma auricular?
Dr. Amaral: O tratamento ideal é a drenagem precoce do hematoma, realizada por um profissional de saúde em ambiente limpo e seguro. Quanto mais cedo for feita a drenagem de preferência nas primeiras 24 a 48 horas maior a chance de a orelha cicatrizar com aparência normal . Quando a lesão já se tornou crônica e fibrosada, apenas procedimentos cirúrgicos podem melhorar a forma da orelha (e dificilmente devolvem 100% do formato original).
VDN: Há formas de prevenir a orelha em couve-flor?
Dr. Amaral: Sim. A prevenção é simples e passa por três pilares:
1. Proteção durante o treino: O uso de protetores auriculares (headgear ou scrum cap) reduz o atrito e distribui a pressão sobre as orelhas. Embora ainda seja pouco usado no Jiu-Jítsu, esse equipamento é comum na luta olímpica e tem eficácia comprovada, com estudos mostrando redução de cerca de 50% na incidência de hematomas auriculares entre atletas que usam protetores regularmente.
2. Cuidados imediatos após traumas: Ao sentir dor, calor ou perceber inchaço na orelha, interrompa o treino e aplique gelo imediatamente para reduzir a inflamação. Não “aguente no sofrimento” sinais precoces são o momento de intervir antes que o sangue coagule. Procure avaliação médica em até 24 horas para drenar qualquer acúmulo antes que se organize.
3. Respeitar o tempo de recuperação: Evite treinar com a orelha ainda machucada; a repetição do trauma impede a cicatrização e aumenta o risco de deformidade permanente. Após a drenagem, deve-se dar um tempo para o tecido cicatrizar aderido atletas costumam retornar apenas 7 a 21 dias depois, quando a orelha já está curada e os curativos/suturas foram removidos.
VDN: O protetor auricular atrapalha o treino?
Dr. Amaral: Alguns atletas relatam desconforto no início, principalmente em posições de guarda ou raspagem. No entanto, a maioria se adapta após algumas sessões, e os modelos atuais específicos para Jiu-Jítsu são mais leves e ventilados. Há exemplos de competidores de alto nível que treinam de headgear sem prejuízo técnico. O uso do protetor é uma escolha inteligente para quem quer manter a orelha íntegra sem abrir mão de treinos duros mesmo que estranhe no começo, vale a pena pela prevenção.
VDN: Se a orelha já está deformada, ainda dá para corrigir?
Dr. Amaral: Quando a fibrose já se instalou, o tratamento é mais complexo. Alguns casos se beneficiam de cirurgia plástica reparadora, que pode remodelar a cartilagem e melhorar a aparência, mas dificilmente devolve 100% do formato original. O procedimento geralmente envolve retirar ou desbastar as porções de cartilagem espessada e reposicionar a pele sobre o contorno normal da orelha. É uma cirurgia eletiva e depende de avaliação conjunta entre um cirurgião plástico e um otorrinolaringologista, considerando os benefícios estéticos versus os riscos e resultados possíveis.
VDN: Existe alguma vantagem em ter a orelha marcada?
Dr. Amaral: Do ponto de vista médico, não há nenhum benefício funcional em ter a orelha deformada. O mito de que a orelha endurecida “aguenta mais pancada” é infundado; pelo contrário, o tecido fibroso resultante é menos resistente e pode doer em novos impactos. Em suma, a orelha em couve-flor confere apenas um status estético/cultural, sem melhorar desempenho ou resistência a lesões.
Estudos publicados em periódicos de Medicina Esportiva e Otorrinolaringologia confirmam que o diagnóstico e a drenagem precoces reduzem drasticamente o risco de deformidade permanente. Por exemplo, há relatos clínicos mostrando que drenar o hematoma em até 48 horas resultou em preservação do contorno normal na maioria dos casos. O uso de protetor auricular também mostrou eficácia na prevenção: pesquisas com lutadores indicam que o headgear pode reduzir pela metade a incidência de hematomas de orelha . Essas evidências respaldam as orientações acima e reforçam a importância de atuação rápida e medidas preventivas para lidar com a orelha em couveflor.
A orelha em couve-flor é uma marca histórica dos tatames, mas não precisa ser o destino de todo praticante. Com informação, proteção e tratamento adequado, é possível treinar e competir em alto nível preservando a saúde e a estética. No Jiu-Jítsu, a coragem não se mede pela cicatriz mede-se pela disciplina em cuidar do corpo para continuar evoluindo no esporte.
Dr. Ricardo Amaral Filho – @amaralfilho
Médico de Família e Comunidade
Médico do Esporte | Mestre em Educação
White House Jiu-Jitsu | Manauara EC