Treinar jiu-jítsu no início pode ser apenas para aprender golpes e técnicas, logo descobre que está entrando em algo muito maior, uma verdadeira tribo, uma rotina que traz equilíbrio e um constante desafio de superação pessoal, estudos já demonstram que, além das melhorias físicas, a prática do Jiu-Jítsu traz ganhos emocionais importantes para os praticantes, formando uma família no tatame, desenvolve-se disciplina diária e fortalece a mente para lidar com as derrotas e vitórias da vida.
Este é o maior desafio do Jiu-Jítsu, ir muito além da técnica e encontrar pertencimento, estrutura e resiliência dentro e fora da academia.
Vanguarda do Norte: O que a prática do Jiu-Jítsu oferece além da técnica ensinada no tatame?
Dr. Ricardo Amaral Filho: “A arte suave”, tem um universo de aprendizados que vai muito além de aspectos táticos e técnicos. Em primeiro lugar, tem um forte componente social e de identidade, quem treina regularmente sente que faz parte de uma família no tatame.
Pesquisas antropológicas mostram que grupos de artes marciais frequentemente se veem como famílias, nas quais colegas de treino são considerados verdadeiros irmãos que cuidam uns dos outros e passam adiante seus conhecimentos, tenho amigos de quando eu era faixa branca! Esse sentimento de pertencimento cria laços, você não está sozinho, mas cercado por parceiros e professores que apoiam seu progresso e em sua vida. Em segundo lugar, a prática constante estabelece uma rotina disciplinar. Cada aula reforça hábitos de compromisso, respeito a regras e concentração. As crianças, por exemplo, não aprendem somente golpes, elas absorvem disciplina, autocontrole, coordenação, equilíbrio e foco, levando esses valores para a vida fora dos tatames
juntamente com mais confiança e autoestima . Por fim, o Jiu-Jítsu nos coloca diante de desafios e superações o tempo todo. A cada posição difícil ou treino exaustivo, aprendemos a lidar com frustração, a persistir e a superar-nos, isto leva o resultado de um grande fortalecimento psicológico, menos estresse do dia a dia, mais controle emocional e coragem para enfrentar problemas. Pode-se dizer que, ao praticar Jiu-Jítsu regularmente, estamos treinando não apenas o corpo, mas também a mente e o caráter.
Ali no tatame, todo mundo cresce junto, músculos, amigos e resiliência se desenvolvem.
VDN: Como o ambiente do tatame promove um senso de pertencimento e comunidade para os praticantes?
Dr. Amaral: O acolhimento comunitário é um dos pontos mais bonitos da comunidade do Jiu-Jítsu. Desde os primeiros dias de treino, o iniciante percebe que entrou para uma grande família marcial. Existe toda uma cultura de companheirismo, todos passam pelos mesmos desafios, comemoram as vitórias uns dos outros e compartilham aprendizados.
Não é raro que a academia se torne uma segunda casa, um lugar onde se sente conforto e confiança. Estudos em psicologia social e antropologia confirmam esse fenômeno, praticantes de artes marciais frequentemente relatam um profundo sentimento de pertencimento em seus grupos, chegando a enxergar colegas e mestres como se fossem parentes de linhagem, como uma família estendida. Por estar quase diariamente com as mesmas pessoas, treinando e suando juntos, formam-se laços de amizade sincera, muitos colegas de tatame acabam entrando para o círculo íntimo de amizades uns dos outros para toda vida. Esse senso de “tribo” traz segurança emocional, saber que você tem um grupo que te apoia, que entende suas dificuldades (afinal, todos já foram iniciantes um dia) e que comemoram suas vitórias. Para jovens atletas, sentir-se
parte de uma equipe ajuda na autoestima e no vínculo social, reduzindo aquela insegurança de “não pertencer” tão comum na adolescência. Além disso, o tatame é um espaço democrático, diferentes idades, origens e profissões dividem o mesmo lugar, o que ensina respeito à diversidade e gera uma rica troca cultural. Em resumo, o tatame apoia no pertencimento ao fazer cada praticante se sentir valorizado dentro de uma comunidade, você veste o mesmo kimono que todos, usa as mesmas cores e símbolo da equipe, independente de qualquer coisa, sabe que ali é acolhido.
VDN: Qual é a importância da disciplina e da rotina do Jiu-Jítsu para o desenvolvimento emocional e cognitivo?
Dr. Amaral: A rotina disciplinar do Jiu-Jítsu funciona como uma âncora de estabilidade no dia a dia, e isso é valioso tanto para a mente quanto para o cérebro. Manter horários regulares de treino, seguir aquecimentos, repetir técnicas, essa estrutura toda dá ao praticante uma sensação de previsibilidade e ordem num mundo caótico e todos com vidas atribuladas. Estudos mostram que estabelecer e seguir rotinas cria estabilidade e previsibilidade na vida, algo especialmente benéfico para a saúde mental e emocional.
Para crianças e adolescentes, por exemplo, a regularidade das aulas ensina disciplina, responsabilidade com horários e perseverança em objetivos de longo prazo. Essa estabilidade oferecida pelo esporte ajuda a reduzir sentimentos de ansiedade e a construir hábitos saudáveis de organização pessoal, no tatame, aprende-se que não basta aparecer quando se está com vontade é preciso consistência, mesmo nos dias difíceis. Com o tempo, essa mentalidade disciplinada leva-se para outras áreas, o aluno passa a ter mais foco nos estudos, a cumprir tarefas com dedicação e a lidar melhor com frustrações. Do ponto de vista neurocientífico, a repetição de exercícios e movimentos também aprimora as conexões cerebrais, beneficiando a coordenação motora fina, a memória procedural (de sequências e técnicas) e até a capacidade de concentração sustentada. Além disso, seguir uma rotina de treinos melhora o sono e o apetite, fatores biológicos que impactam diretamente o humor e a cognição. A disciplina no Jiu-Jítsu vem acompanhada de valores, respeito às regras, ao professor, ao colega de treino, e isso favorece o equilíbrio emocional. Pessoas com boa autodisciplina tendem a ter menos comportamentos de risco e lidam melhor com o estresse, apresentando geralmente menos problemas de saúde mental. A rotina no tatame funciona como um treino para a vida, cria estrutura, ensina o valor do esforço contínuo e traz uma sensação de segurança interna (“sei que estou fazendo minha parte, evoluindo passo a passo e sem pausa e sem pressa”). A disciplina não é prisão, é libertação, ao seguir uma rotina de Jiu-Jítsu, o atleta ganha autoconfiança, autodomínio e um cérebro mais preparado para enfrentar desafios.
VDN: De que forma enfrentar desafios e derrotas no Jiu-Jítsu ajuda na construção da resiliência?
Dr. Amaral: Resiliência é a capacidade de voltar por cima diante das dificuldades, e poucos ambientes são tão propícios para desenvolvê-la quanto o tatame. No Jiu-Jítsu, todos nós, cedo ou tarde, vamos passar pela experiência de perder, seja uma luta em campeonato, seja uma posição durante o treino em que precisamos dar os três tapinhas e recomeçar. Mas o grande ensinamento aqui é como lidamos com essas pequenas derrotas, as aulas acontecem em um contexto seguro e com apoio, se você falha em aplicar um golpe, o professor corrige, o colega te incentiva a tentar novamente. Assim, aprendemos que errar faz parte do processo e que cada revés traz um aprendizado.
Especialistas em educação física e psicologia do esporte destacam que expor crianças e jovens a sucessos e fracassos em um ambiente positivo, como o de um time esportivo ou de uma academia de luta, é fundamental para eles desenvolverem resiliência e mentalidade de crescimento. Pesquisas com esportistas mostram exatamente isso, perder um jogo ou enfrentar um oponente difícil, quando bem trabalhado, ajuda o jovem a entender que o importante é como reagir ao revés, e não o fracasso exatamente. No Jiu-Jítsu, a mesmo que o aluno leve pontos ou até seja finalizado, ele é encorajado ao final, cumprimentar e continuar lutando no próximo rola. Com o tempo, essa postura se internaliza. Crianças que avançam no Jiu-Jítsu passam a lidar melhor com adversidades, persistir diante das dificuldades e confiar mais em si mesmas a cada obstáculo superado, não se desesperar ou desistir com um problema, o atleta aprende a respirar fundo, analisar o que pode fazer diferente e tentar de novo, exatamente a atitude que compõe a resiliência. Uma vez desenvolvido no tatame, acompanha o praticante fora dele, seja uma nota baixa na escola ou um desafio no trabalho, ele lembra que já superou muita coisa difícil treinando e que pode superar de novo. Em última instância, o Jiu-Jítsu nos ensina que nenhuma derrota é definitiva e que sempre podemos nos adaptar, melhorar e voltar mais fortes. Cada revés no tatame se transforma numa metáfora para a vida, perder, aprender e levantar mais forte, essa é a essência da resiliência construída no esporte.
VDN: Quais são os impactos da prática regular do Jiu-Jítsu na saúde mental e na redução do estresse?
Dr. Amaral: A saúde mental é um dos maiores ganhos de quem treina Jiu-Jítsu com regularidade. Como toda atividade física, ele libera endorfinas e melhora o humor, mas vai além, combina exercício intenso com foco mental, disciplina e convivência. Muitos dizem que o tatame se torna um refúgio, ao amarrar a faixa e pisar no tatame, as preocupações ficam do lado de fora.
Durante um treino, a mente se concentra no momento presente, aliviando ansiedade e estresse, studos indicam que praticantes frequentes apresentam menos sintomas de ansiedade e depressão. Há um efeito biológico liberação de endorfina, serotonina e dopamina e um efeito psicológico, com a superação nos treinos aumenta a confiança.
O treino em dupla também ajuda na interação social e apoio mútuo, fortalecendo o humor positivo e colaboração. Além disso, o Jiu-Jítsu ensina respiração e controle emocional, habilidades que ajudam a lidar com pressão dentro e fora do tatame.
Jiu-jitsu, é uma poderosa válvula de escape: reduz estresse, combate ansiedade, eleva o astral e fortalece a resiliência mental. Não substitui tratamento profissional quando necessário, mas é valioso no equilíbrio emocional e parte de tratamento.
VDN: O Jiu-Jítsu pode ajudar a melhorar o foco e a concentração dos praticantes? De que maneira?
Dr. Amaral: No Jiu-Jítsu, foco e concentração são questão de sobrevivência, se distrair, em segundos, você está imobilizado ou finalizado, a técnica e estratégica na arte suave exige atenção total, cada pegada, posição do quadril ou das pernas e equilíbrio do adversário tudo isso é levado em conta quando estamos lutando, são muitas variáveis.
Crianças com dificuldade de atenção, por exemplo, costumam apresentar grande melhora após alguns meses de treino. Isso porque o Jiu-Jítsu alterna momentos de alta energia com pausas de observação e escuta atenta, treinando autocontrole. O esporte canaliza energia, ensina a importância de manter o foco para alcançar objetivos e estimula a cooperação.
Adultos também se beneficiam, percebendo mais concentração no trabalho e nos estudos. Há base neurocientífica, a combinação de exercício físico com aprendizagem motora complexa como a do jiu-jítsu, desafia o cérebro a resolver problemas rápidos, deixando-o mais eficiente.
O ambiente disciplinado do tatame, sem celulares ou interrupções, cria um espaço raro de foco profundo, algo cada vez mais escasso no dia a dia e para os jovens, o Jiu-Jítsu funciona como um verdadeiro “exercício mental”, melhorando atenção, memória e agilidade de raciocínio, refletindo positivamente em todas as áreas da vida.
VDN: Como a prática do Jiu-Jítsu influencia a autoestima e a autoconfiança de crianças e adultos?
Dr. Amaral: A autoestima cresce no tatame do simples fato de encarar um desafio e ver a própria evolução por menor que seja, como aprender a cair corretamente, vencer a timidez de treinar com alguém mais graduado, ou conquistar aquele primeiro grau na faixa branca, traz uma sensação de realização pessoal muito forte. Cada meta atingida (mesmo que seja dar os três treinos na semana conforme planejado) envia ao cérebro a mensagem: “eu sou capaz!”. Com o tempo, essas pequenas vitórias acumuladas constroem uma autoconfiança sólida. No caso de crianças e adolescentes, há estudos comparativos mostrando que praticantes de Jiu-Jítsu apresentam níveis mais elevados de autoestima e autoconfiança em relação a jovens que não praticam artes marciais. No tatame a criança aprende a acreditar no próprio potencial, ela literalmente vê sua força e habilidade crescerem com esforço. Além disso, receber elogios de professores e colegas (“Bom trabalho!”, “Você melhorou muito!”) reforça uma autoimagem positiva.
Em adultos, inclusive, muitos iniciam no Jiu-Jítsu inseguros ou insatisfeitos consigo (às vezes por estarem acima do peso, ou por nunca terem sido de esportes) e, meses depois, relatam se sentir de bem consigo mesmos. A prática regular do jiu-jítsu melhora o condicionamento físico, muda o corpo (emagrece, define músculos) e isso também impacta positivamente a autoestima. Mas o principal é interno, o praticante descobre uma força interior e passa a se valorizar que pode conquistar através do próprio esforço. No caso das mulheres, por exemplo, o Jiu-Jítsu tem um forte papel empoderador ao dominar técnicas e superar desafios físicos, muitas desenvolvem uma autoconfiança que se estende para outras áreas da vida (trabalho, relações pessoais,
etc.)
O Jiu-Jítsu oferece um ciclo virtuoso, você enfrenta um desafio, aprende com ele, melhora e se sente orgulhoso disso, e então está pronto para desafios maiores. Isso cria uma autoeficácia (crença na própria capacidade) cada vez maior. A autoestima trabalhada no esporte não é uma vaidade vazia, pelo contrário, ela vem acompanhada de humildade e espírito esportivo! No tatame, você ganha confiança, mas também aprende respeito e empatia (porque sabe o quanto foi difícil chegar ali). O resultado final é um praticante confiante, porém equilibrado, que confia em si, mas reconhece seus limites e valoriza o próximo. Essa é a melhor combinação para uma autoestima saudável.
VDN: A convivência no Jiu-Jítsu contribui para a sociabilidade e as relações fora do tatame? De que forma?
Dr. Amaral: Sim! O formato coletivo das aulas e a filosofia do Jiu-Jítsu favorecem naturalmente a socialização. Diferente de práticas individuais, o treino depende de um parceiro, o que estimula cooperação desde o início. Com o tempo, colegas viram amigos e as interações se estendem para fora da academia, viagens, eventos e até momentos de lazer. Cada um acaba entregando seu próprio corpo para o parceiro de treino aprender! Isto gera muita cumplicidade.
Pesquisas mostram que artes marciais praticadas em grupo fortalecem o senso de comunidade, especialmente em pessoas tímidas, isoladas ou que passaram por traumas, pois oferecem um espaço seguro de apoio e conexão. Em crianças, observamos melhora no comportamento social, aprendem a seguir regras, respeitar hierarquia, dividir e trabalhar em equipe, levando esses valores para a escola e para casa. Para adultos, é uma oportunidade de ampliar o círculo social com pessoas que compartilham um estilo de vida saudável. O tatame também oferece diversão e camaradagem, criando uma rede de apoio emocional amizades que duram a vida inteira.
O Jiu-Jítsu fortalece relações humanas por meio da prática diária de convivência e dos valores de respeito, empatia e cooperação, formando indivíduos mais preparados para interagir positivamente em qualquer ambiente.
VDN: Como pais e professores podem apoiar o sentimento de pertencimento, a rotina saudável e o espírito de superação nos jovens praticantes de Jiu-Jítsu?
Dr. Amaral: O apoio da família e dos professores é decisivo. Pesquisas mostram que cerca de 70% das crianças abandonam o esporte antes dos 13 anos porque deixou de ser divertido. Por isso, o papel dos pais é incentivar sem transformar o treino em obrigação, comemorar pequenas conquistas e dar alguma autonomia, mantendo o JiuJítsu como fonte de alegria e crescimento.
Ir para a campeonatos, torcendo e conhecendo colegas e professores, reforça o sentimento de pertencimento. Professores e pais devem atuar juntos, alinhando disciplina, respeito e incentivo.
É fundamental evitar pressão excessiva por resultados, focando no esforço, na disciplina e na coragem de competir. Cobrança exagerada aumenta a ansiedade e pode levar ao abandono do esporte.
No Jiu-Jítsu, percebemos que as maiores vitórias estão dentro de nós. É o sentimento de pertencer a uma tribo que acolhe, a serenidade de uma rotina que disciplina e fortalece, e a coragem esculpida com superação diária. Mais do que formar campeões de tatame, o Jiu-Jítsu forma campeões para a vida pessoas mais equilibradas, confiantes e solidárias. Cada faixa traz histórias de amizade, hábitos saudáveis e batalhas internas vencidas; cada gota de suor, um significado profundo de transformação pessoal.
No fim, a arte suave revela-se uma arte de viver, pertencer a algo maior dá motivação para persistir; seguir uma rotina constrói a base para sonhos, levantar-se após cada queda revela uma força interior pronta para qualquer desafio que a vida traga. E assim, muito além da técnica, permanecem o caráter, a amizade e a certeza de que a maior vitória é superar a si mesmo.
Ricardo Amaral Filho (@amaralfilho)
Médico de Família e Comunidade
Médico do Esporte | Mestre em Educação
White House Jiu-Jitsu | Manauara EC