A trajetória de um atleta de jiu-jítsu é quase quase sempre narrada por finalizações, títulos e conquistas. No entanto cada medalha também histórias silenciosas de superação emocional, saudade, e amadurecimento precoce. Para muitos jovens atletas, o sonho de competir em alto nível exige sair de casa muito cedo. Isso impacta não apenas o competidor, mas toda a sua rede de apoio: pais, irmãos, treinadores, escola e amigos. A jornada em busca do sonho exige ser construída com disciplina e com renúncias, muitas renúncias.
Com a proximidade do mundial IBJJF de jiu-jítsu, neste artigo vamos refletir sobre os aspectos emocionais e humanos que o tatame não mostra, usando evidências científicas, experiência como médico, faixa preta, treinador de atletas de jiu-jítsu juvenil, adulto e master e pai de atleta.


Vanguarda do Norte: Qual o maior desafio emocional para um jovem atleta que vive longe da família?
Dr. Amaral: Enfrentar a transição precoce para a vida adulta, lidando com pressões competitivas sem o acolhimento do ambiente familiar. Estudos com atletas brasileiros mostram que a ausência da família altera drasticamente o círculo social do jovem, levando à solidão, perda de identidade e dificuldades emocionais (Marques & Samulski, 2009). A pressão por resultados, aliada à saudade de casa, pode contribuir para ansiedade e estresse crônico (Gulliver et al., 2012).
No alto rendimento, o primeiro desafio não é o adversário, é a solidão do caminho… Aprendi que antes de vencer no tatame, o jovem atleta precisa vencer a ausência que mora no peito, a dor da distância da família não é medida em quilômetros, e sim na falta de abraço depois de uma luta ou dia difícil, uma massagem, cozinhar, lavar roupas quando cansado ou uma sopa com carinho e remédios quando doente. O sonho exige sacrifícios e o mais silencioso deles é crescer sem os olhos, cuidado, carinho, zelo e amor dos pais por perto. Como podemos perceber, o sonho cobra cedo o preço da distância, em minha vivência como professor, médico e pai de atleta, aprendi que a luta mais pesada, às vezes, é a saudade e não o próprio adversário. A performance depende muito deste equilíbrio emocional.
VDN: Como a ausência dos pais impacta a formação psicológica de um atleta
adolescente?
Dr. Amaral: Os pais quando distantes, o jovem perde parte do suporte emocional imediato e da percepção precoce de mudanças de comportamento. Mesmo colegas e treinadores ajudando a preencher essa lacuna, tornando-se uma “segunda família” (Lima et al., 2023).
O apoio emocional precisa ser reconstruído na nova rede de convivência e, em muitos casos, o que sustenta o jovem atleta é a presença simbólica dos pais, na lembrança, na ligação diária, ou naquela voz que o atleta escuta internamente quando precisa decidir entre desistir ou seguir.
VDN: Como a família pode apoiar mesmo à distância?
Dr. Amaral: Com presença afetiva. Telefonemas, mensagens, vídeos, apoio antes de lutas, e participação mesmo virtual em conquistas e derrotas criam um “cordão emocional” fundamental e essencial. Durante a pandemia, vimos como clubes e pais se uniram para resgatar atletas em risco de afastamento emocional através de ações simples de contato humano (Tonietto et al., 2021).
Estar presente, mesmo à distância, é um ato de amor diário, muitas vezes, uma simples mensagem de voz na véspera da luta ou uma ligação para fazer uma oração, vale mais que muita técnica ensinada no treino.
VDN: Qual o peso silencioso que pais e mães carregam ao apoiar um sonho assim?
Dr; Amaral: Pesado. É muito pesada a renúncia diária a presença, os custos financeiros, o sofrimento quando doentes, a ansiedade com lesões e a distância emocional criam um verdadeiro fardo invisível. Como pais experimentamos diversos sentimentos, que podem ir da culpa por estarem longe e medo de não oferecer suporte suficiente a estados depressivos. Mas também vivem intensamente cada conquista com orgulho e emoção. Um estudo mostrou que pais lidam com esta verdadeira montanha russa de sentimentos de estresse, mas também com alegria genuína pelo crescimento dos filhos (Eckardt et al., 2024).
A dor da distância é real, mas o amor dos pais aprende a se conter e calar para não pesar e não ser egotista em não permitir a vivência a seus filhos. Apoiar de longe é um desafio diário de renúncia… amar sem segurar, torcer e participar sem controlar, e confiar no processo mesmo com o coração apertado. O altruísmo do amor está em permitir que a prole vá, mesmo quando cada célula dentro de nós quer que fique. Pais de atletas aprendem a aplaudir de longe, mesmo quando o que mais desejam é apenas abraçar. No silêncio dessa renúncia, resta aos filhos, a educação e valores dados para seguir edificando o alicerce invisível da dedicação e perseverança para vencer.
VDN: Quando a disciplina vira solidão? Qual o papel dos pais?
Dr. Amaral: Existe uma linha tênue. O esporte de alto rendimento exige abdicação… menos festas, mais treinos, menos amigos, mais repetição. Essa dedicação extrema pode gerar isolamento, estudo recente concluiu que a solidão é um dos fatores de maior impacto negativo na saúde mental dos atletas, mesmo quando estão cercados por colegas de equipe (Thomas, 2024).
O suporte e apoio familiar é fundamental para o equilíbrio emocional de jovens atletas.
Estudos como os de Gulliver et al. (2012) e Lima et al. (2023) comprovam que a presença da família, é um fator protetor direto contra ansiedade, sofrimento psicológico e até a desistência esportiva.
No momento que a disciplina vira isolamento, o risco emocional deixa de ser hipótese, ele é uma realidade documentada e de alta frequência nos consultórios, a medicina esportiva e profissionais de saúde mental, entendem que o papel da família não é mais apenas desejável, é essencial. A ciência já comprova o que o coração sempre soube, principalmente nos momentos de maior stress, período pré competição nenhum atleta deveria carregar sozinho o peso do seu sonho. Não é sobre sonhar pelo atleta! Falamos de poder viver, apoiar e ser o espectador mais feliz emocionado e que mais ama o atleta.


VDN: Quais sinais de alerta emocional devemos observar nessa fase da vida?
Dr. Amaral: Identificarmos precocemente o sofrimento emocional dos atletas, principalmente os jovens é fundamental para intervir a tempo e evitar consequências mais graves. Sinais para atenção redobrada, mudanças bruscas de comportamento, como irritabilidade, retraimento, perda de motivação ou apatia em treinos e competições. Além disso, queixas físicas sem causa médica clara, como dores de cabeça frequentes, lesões repetidas, distúrbios do sono ou alterações no apetite, também podem ser manifestações indiretas de sofrimento psicológico.
O isolamento social, a queda inesperada de desempenho e o desinteresse por atividades que antes traziam prazer são outros alertas importantes. Estudo da American Psychiatric Association (2023) mostra que atletas adolescentes com sintomas persistentes como esses estão em maior risco de desenvolver quadros de ansiedade, depressão e burnout esportivo. Já Rodrigues et al. (2020) mostra que o rendimento esportivo pode cair drasticamente mesmo antes do jovem reconhecer que algo não vai bem.
Estar atento a essas mudanças e criar um ambiente de escuta aberto e ativo é indispensável. O silêncio do atleta nem sempre é disciplina, pode ser um pedido de socorro não verbalizado.
Estudos mostram que alterações comportamentais, físicas e sociais em atletas podem ser os primeiros sinais de sofrimento mental. Ignorar esses sinais compromete não apenas o desempenho, mas a saúde integral do atleta. Reconhecer precocemente essas mudanças e criar um ambiente onde se possa falar abertamente sobre emoções deixou de ser uma recomendação, passou a ser uma responsabilidade compartilhada entre técnicos, médicos e familiares. Cuidar da mente do atleta é tão urgente quanto prevenir lesões físicas.
VDN: O que o esporte de alto rendimento ensina sobre perda, frustração e superação?
Dr. Amaral: O esporte ensina a cair e levantar. A frustração molda o caráter. Estudos com adolescentes atletas mostram que a derrota pode ser um instrumento de crescimento, desde que venha acompanhada de apoio emocional. É da frustração que nascem a resiliência, a humildade e a força para continuar (Amblard & Cruz, 2015).
No tatame, e na vida, não se pode controlar o resultado, mas se escolhe e se treina como reagir a ele. Como disse Epicteto, “não são as coisas que nos afetam, mas o julgamento que fazemos delas”. O jovem que aprende a perder com dignidade e a se reerguer com humildade carrega algo maior que um título, carrega caráter. Porque o verdadeiro campeão não é o que nunca cai, mas o que sempre escolhe levantar, com coragem, presença e propósito.
VDN: Como lida com a dor de ver o filho crescer longe, sendo pai, médico e professor?
Dr. Amaral: Minha esposa e eu vivemos uma gangorra emocional, não temos outro assunto e vivemos com um misto de dor, orgulho e gratidão. Ver nosso filho amadurecer no tatame longe de casa é ver o sonho dele se concretizar à custa de saudade. Já como médico, vejo o risco, como professor, enxergo o potencial dele e como pai, sinto o vazio no acordar sem ele me chamar para treinar. Mas acredito e confio que criamos filhos para o mundo, e é no mundo que eles vão se tornar grandes, se forem sustentados por amor, mesmo de longe é sempre programamos férias para estar no final de preparação das maiores competições, fazemos viagens o mais frequentemente o possível para estar ao lado, os avós também visitam e passam datas como natal e aniversário… A família se desdobra para viver com ele o sonho dele.


A formação de um campeão vai muito além da técnica. Exige estrutura emocional, redes de apoio e equilíbrio entre disciplina e bem-estar. No jiu-jítsu, como na vida, vencer também é saber perder, saber sentir e, quando necessário, saber voltar para casa.
Famílias, técnicos, médicos, psicólogos e atletas compartilham esse sonho, mas não se pode esquecer nem subestimar o custo silencioso que ele cobra. Reconhecer e cuidar da parte emocional dessa jornada é o que garante não apenas bons atletas, mas bons seres humanos.
Porque, no fim das contas, estamos lidando com mais do que resultados, estamos falando da vida e da história única de cada um deles. Nunca podemos esquecer que o sonho é deles e que eles são os atores principais!
Dr. Ricardo Amaral Filho (@amaralfilho)
Mestre em Educação e Saúde | Médico de Família e Comunidade | Medicina do Esporte