O fim do ano é tempo de festas, encontros de família, festas de trabalho e muitas confraternizações. É natural querer relaxar da rotina, comer bem e beber um pouco além da conta. Afinal, foram meses de treinos e dietas rígidas, por que não comemorar?
Nesse período que ocorre muito descuido com o corpo, e o exagero de álcool, festa e comidas gordurosas pode cobrar um preço alto. Como médico de família e do esporte, vejo muitos leigos, atletas, pais e treinadores acreditando em mitos sobre ressaca e esportes. Nesta coluna quero explicar, sem moralismo, o que de fato acontece no organismo quando bebemos demais e por que treinar de ressaca pode ser perigoso.
Vamos falar de fisiologia com linguagem acessível, respondendo às perguntas mais comuns desse tema.
Vanguarda do Norte: O que realmente causa a ressaca?
Dr. Ricardo Amaral Filho: A ressaca não é “preguiça” ou “frescura” é um conjunto de sintomas fisiológicos reais! Eles surgem por vários fatores decorrentes do consumo excessivo de álcool. Primeiro, o próprio etanol é metabolizado pelo fígado em subprodutos tóxicos. O principal deles é o acetaldeído, que é bem nocivo e está ligado a dores de cabeça, náuseas e aquela sensação geral de mal-estar, em seguida o organismo transforme o acetaldeído em acetato (menos tóxico), o acúmulo dele durante a noite explica parte do sofrimento pela manhã…
O álcool inibe o hormônio antidiurético (vasopressina) e age como diurético, faz o corpo eliminar muita água e eletrólitos pela urina. Essa perda extra de líquido provoca sede intensa, boca seca e até câimbras musculares no dia seguinte. Em parte, por isso a gente sente aquelas tonturas e a sensação de cansaço. O suco gástrico também entra em ação, o álcool irrita o estômago, aumenta a produção de ácido e pode causar gastrite leve. Isso explica a azia, o enjoo e até os vômitos que alguns sentem. O desequilíbrio no intestino (mudança na flora intestinal) também contribui para a diarreia ou desconforto abdominal.
O álcool ativa o sistema imune e eleva a liberação de citocinas inflamatórias, essas substâncias desencadeiam uma inflamação de baixo grau, piorando dores de cabeça, fadiga e indisposição geral. Resumindo, a ressaca é uma “tempestade” de efeitos, toxicidade do álcool (e de subprodutos como o acetaldeído), desidratação e desequilíbrio de eletrólitos, irritação do trato digestivo e inflamação sistêmica. Cada pessoa tem seu nível de sensibilidade fatores genéticos, sexo, peso, alimentação e até tipo de bebida (destilados escuros tendem a deixar mais ressaca que vodca, por exemplo) influenciam na intensidade. Mas em qualquer caso, os sintomas desagradáveis vêm dessa combinação de causas físicas.
VDN: Por que o álcool desidrata tanto o corpo?
Dr Amaral: O álcool tem efeito diurético poderoso! A explicação é simples: ele bloqueia um hormônio chamado vasopressina, que é o hormônio antidiurético do corpo. Em condições normais, a vasopressina manda os rins reterem água quando precisamos.
Sob o efeito do álcool, esse sinal fica “desligado”.
VDN: Beber água “resolve” o problema?
Dr. Amaral: Hidratar-se é fundamental, mas não é uma cura mágica para a ressaca. É verdade que repor os líquidos perdidos alivia sintomas como sede, tontura e até ajuda na disposição. “É importante repor os fluidos perdidos bebendo água” após beber.
Então, beber bastante água antes de dormir e no dia seguinte ajuda o corpo a se recuperar do volume perdido.
VDN: Por que treinar de ressaca aumenta risco de lesão?
Dr. Amaral: Treinar de ressaca não é prova de coragem: é receita para acidentes. Sob efeito da ressaca, seu corpo está desfalcado de recursos cruciais para o exercício. Em primeiro lugar, a coordenação motora e os reflexos ficam comprometidos. Médicos do esporte e treinadores alertam que o álcool diminui as reações neuromusculares e prejudica a função cognitiva. Isso significa que você pisca devagar, erra movimentos ou tem atrasos na hora de equilibrar peso, situações perfeitas para torções e quedas inesperadas. Além disso, a desidratação e a baixa de glicogênio (energia armazenada) reduzem a força muscular e a resistência. O corpo “grita” que não está 100%. Quem treina no dia seguinte a bebedeiras tem desempenho pior e mais acidentes.
Conforme a reportagem, “a ingestão de bebidas alcoólicas prejudica o rendimento atlético e favorece o aparecimento de lesões”, ressaca diminui a resposta aeróbica e a coordenação da pessoa, e a prevalência de lesões entre atletas que bebem excessivamente aumenta bastante.
Outro ponto é o fator biológico, o exercício provoca microlesões musculares e inflamação controlada para fortalecer os músculos. Mas o álcool já induziu um estado inflamatório anormal no corpo. Isso desequilibra a resposta de recuperação muscular.
Em outras palavras, o corpo está mais “frágil” e ainda cheio de substâncias de estresse de uma noite mal dormida, praticar exercício vigoroso sob esses efeitos não só atrasa a recuperação (musculares e neurológica), mas também deixa você mais vulnerável a uma lesão de fato. Especialistas concluem que a ressaca combinada com exercício físico só piora o estado de saúde, o organismo, mais suscetível, tem risco aumentado de lesão se você insistir no treino pesado, a ressaca compromete a coordenação (você não se movimenta como de costume) e o corpo não está bem nutrido nem hidratado. Se você levantar peso ou correr rápido nessas condições, aumenta muito as chances de entorses, estiramentos musculares, quedas e até desmaios. Por isso, o conselho médico é claro: no dia seguinte de bebedeira pesada, foque em descanso, alongamentos leves ou atividades suaves (uma caminhada, por exemplo) mas nada de exercícios extenuantes até se sentir 100%.
VDN: Qual o maior erro do fim de ano: automedicação?
Dr. Amaral: Outro grande engano nas festas é tentar “curar” a ressaca com remédios e truques caseiros. Auto-medicar-se sem orientação pode até parecer solução rápida, mas é cilada. Muitos tomam analgésicos (dipirona, paracetamol, aspirina) ou antiinflamatórios para aliviar a dor de cabeça e o mal-estar. Outros recorrem a energéticos ou muito café para “pegar no tranco” no dia seguinte. Mas isso pode sobrecarregar órgãos vitais. O “uso indiscriminado de analgésicos, antiácidos e anti-inflamatórios para curar a ressaca … pode sobrecarregar órgãos como o fígado e os rins, aumentando o risco de toxicidade”.
VDN: Dá para aproveitar as festas sem se destruir?
Dr. Amaral: Sim, é possível curtir as festas de fim de ano de forma consciente e não ficar “quebrado” no dia seguinte. A palavra-chave é moderação. Isso significa regras simples e inteligentes ao beber, por exemplo, intercalar as bebidas alcoólicas com copos de água e manter-se hidratado até o fim da noite e no dia seguinte. Comer algo sólido antes e durante a festa também ajuda muito, uma refeição equilibrada (carboidratos complexos, proteínas e gorduras boas) antes de sair retarda a absorção do álcool e evita picos muito altos de concentração sanguínea.
Outra dica importante, evite misturar muitos tipos de bebida. Fazer rodízio de cerveja, vinho e destilados na mesma noite faz você perder a conta e beber mais do que imagina. Se ficar em um mesmo tipo de álcool e beber devagar, dá para controlar melhor a dose.
E, cuidado com os mixers, tente não tomar energéticos ou refrigerantes muito doces junto com álcool, pois isso só ajuda a esconder o sabor forte do álcool e faz você beber além da conta sem perceber. Beba água, coma bem, não exagere na dose de álcool (saiba seus limites) e escolha suas bebidas com calma. Essas atitudes não vão eliminar totalmente a ressaca, mas reduzem muito os danos.
Ressaca não é troféu, e sim sinal de que o corpo está pedindo socorro. Cada exagero de fim de ano álcool, fritura, falta de sono cobra um preço fisiológico corporal. Aproveite as festas com parcimônia, sorria, dance, brinde, mas respeite seus limites. Nesse clima, volta ao treino será mais tranquila depois.
Boas festas e cuide-se bem!

