O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, por maioria, a tese que responsabiliza as big techs por conteúdos criminosos postados por terceiros. A tese estabelecida nesta quinta-feira (26) é de que o Artigo 19 do Marco Civil da Internet é parcialmente inconstitucional.
O resultado do julgamento foi de 8 a 3 para a ampliação da responsabilização civil das plataformas. Nesta tarde, os ministros se reuniram por mais de cinco horas em um almoço para chegarem a um acordo.
“Para deixar claro, o Tribunal não está legislando, está decidindo dois casos concretos que chegaram a ele e estamos definindo critérios que vão prevalecer até o Poder Legislativo […] prover sobre essa matéria”, disse o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso.
O que muda?
Atualmente, a atuação das redes no Brasil é regida pelo Marco Civil da Internet, em vigor desde 2014, cujo artigo 19 só permite responsabilização jurídica das empresas em caso de descumprimento de ordem judicial para remoção de conteúdo. Com o julgamento, esse texto passa a ser invalidado.
A nova tese amplia a responsabilidade das big techs sobre o conteúdo postado por terceiros, detalha casos como anúncios pagos e de redes artificiais. Além disso, o texto também define o dever de cuidado para conteúdos ilícitos graves, como atos antidemocráticos ou crimes sexuais, indicando que a falha sistêmica em adotar medidas de prevenção ou remoção gera responsabilidade.
“O art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que exige ordem judicial específica para a responsabilização civil de provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, é parcialmente inconstitucional. Há um estado de omissão parcial que decorre do fato de que a regra geral do art. 19 não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância (proteção de direitos fundamentais e da democracia)”, diz o primeiro item da tese.
A tese formulada ainda diz que, enquanto não há uma nova legislação sobre o tema, os provedores de internet estão sujeitos à responsabilização civil, com exceções no caso das normas eleitorais e atos normativos do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Na nova interpretação, diz que “provedor de aplicações de internet será responsabilizado civilmente, nos termos do art. 21 do MCI, pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crime ou atos ilícitos, sem prejuízo do dever de remoção do conteúdo. Aplica-se a mesma regra nos casos de contas denunciadas como inautênticas”.
Na tese, fica estabelecido que as plataformas são responsáveis por conteúdos ilícitos quando se trata de anúncios e impulsionamentos pagos ou postagens distribuídas por chatbots. “Os provedores ficarão excluídos de responsabilidade se comprovarem que atuaram diligentemente e em tempo razoável para tornar indisponível o conteúdo”, diz.
O texto ainda define como falha sistêmica quando os provedores de internet não adotarem medidas de prevenção ou remoção de conteúdos ilícitos, como em casos de postagens de crimes considerados graves (pornografia infantil, terrorismo, discriminação religiosa, racial, sexual e outras).
A Corte determina que as plataformas que funcionarem como marketplaces devem responder civilmente conforme o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).
O texto ainda faz um apelo ao Congresso para criar uma legislação específica sobre o tema. “Apela-se ao Congresso Nacional para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais.”
Resultado dos casos
Nos casos concretos, os ministros analisaram dois Recursos Extraordinários (RE), sob relatoria dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.
Por maioria, os ministros negaram o provimento do recurso, movido pelo Facebook, relatado pelo ministro Dias Toffoli (RE 1037396). E deram provimento ao recurso (RE 1057258) do Google Brasil, afastando a condenação da empresa pelo colegiado do TJMG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais).
Em nota, o Google disse que ao longo dos últimos meses “vem manifestando suas preocupações sobre mudanças que podem impactar a liberdade de expressão e a economia digital. Estamos analisando a tese aprovada, em especial a ampliação dos casos de remoção mediante notificação (previstos no Artigo 21), e os impactos em nossos produtos. Continuamos abertos ao diálogo”.
O Facebook foi procurado pela imprensa e não ofereceu poscionamento.
Votos dos ministros
Dias Toffoli
Relator de um dos recursos, Toffoli considerou que o modelo atual oferece imunidade às plataformas e deve ser considerado inconstitucional.
O ministro apresentou a proposta de que a responsabilização considere o artigo 21 do Marco Civil da Internet, que prevê que o conteúdo deve ser retirado a partir da simples notificação do usuário.
Toffoli também defendeu que as plataformas retirem do ar publicações que apontam situações graves mesmo sem ser notificada extrajudicialmente.
Luiz Fux
O ministro Fux, que é o relator do outro recurso, votou a favor de que as empresas sejam obrigadas a remover conteúdos ofensivos à honra ou à imagem e à privacidade que caracterizem crimes (injúria, calúnia e difamação) assim que forem notificadas, e o material só poderá ser republicado com autorização judicial.
Fux defende que as plataformas façam monitoramento ativo e retirem conteúdos do ar, sem a necessidade de notificação dos usuários, em casos de discurso de ódio, racismo, pedofilia, incitação à violência e apologia à abolição violenta do Estado Democrático de Direito e ao golpe de Estado.
Luís Roberto Barroso
Em uma linha mais intermediária, Barroso apontou que a regra do Marco Civil sobre a responsabilização das plataformas digitais por conteúdos de terceiros não dá proteção suficiente a direitos fundamentais.
Para o presidente da Corte, se a plataforma for notificada de algo que representa crime, como a criação de um perfil falso, a retirada do conteúdo deve ser imediata.
André Mendonça
Mendonça foi o único ministro que divergiu até o momento. O ministro votou pela constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet. Para ele, plataformas digitais só podem ser responsabilizadas por publicação de terceiros se descumprirem ordem judicial de remoção de conteúdo.
O posicionamento do ministro é favorável às big techs, que se colocam contrárias a alterações no artigo que possam aumentar sua responsabilização.
Flávio Dino
Dino votou para que as big techs sejam responsabilizadas por danos causados por usuários de suas plataformas. Apesar de ter acompanhado o entendimento dos outros ministros que votaram pela responsabilização das plataformas, Dino apresentou uma nova tese sobre o assunto. Sua tese apresenta três pontos centrais:
O provedor de aplicações de internet poderá ser responsabilizado civilmente, nos termos do artigo 21 da lei do Marco Civil da Internet, pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros. Com ressalvas para os dispositivos específicos da legislação eleitoral.
As plataformas ainda poderão ser responsabilizadas em atos próprios, em casos de perfis anônimos e de anúncios que estejam em desacordo com a legislação vigente.
Falha sistêmica: nesta situação, os provedores de internet poderão ser responsabilizados civilmente nos termos do Código de Defesa do Consumidor, pelos conteúdos criados por terceiros nos seguintes casos, em rol de casos de crimes contra crianças, induzimento ao suicídio, terrorismo e apologia à violência contra o Estado Democrático.
Cristiano Zanin
Ao votar, Zanin apontou que o artigo 19 do Marco Civil da Internet apresenta parcialmente inconstitucionalidade. “Os eminentes relatores [Toffoli e Fux] encontraram uma legislação deficiente”, frisou.
O voto do ministro define que, em caso de conteúdo criminoso, a plataforma seria responsável por remover o conteúdo, sem a necessidade de decisão judicial. Apenas no caso de provedores neutros (quando não há impulsionamento), o artigo 19 seria aplicado. Em caso de dúvida sobre a licitude do conteúdo, não ocorreria a responsabilização imediata.
Gilmar Mendes
Mendes também votou no sentido de responsabilizar as big techs. Segundo o ministro, “embora o Artigo 19 tenha sido de inegável importância para a construção de uma internet plural […], hoje esse dispositivo se mostra ultrapassado”
O ministro considerou que a legislação atual concede uma isenção absoluta para plataformas em relação à circulação de conteúdos. Ele apresentou uma tese que prevê a responsabilização das big techs por danos decorrentes da não remoção de conteúdo, caso seja notificada da ocorrência de conteúdo ilícito.
Alexandre de Moraes
O ministro destacou que, enquanto não há uma regulamentação do Congresso Nacional, existe a necessidade de uma interpretação da Corte para que as plataformas não descumpram a Constituição.
No voto, ele apresentou a tese de que “os provedores de redes sociais e dos serviços de mensageria privada devem ser legalmente idênticas e equiparadas aos demais meios de comunicação”.
Segundo o ministro, a justificativa é que as plataformas, por exercerem o desenvolvimento de informações mediante sons, imagens, textos e atuam no sentido de transmitir ideias e informações a outros sujeitos. A mesma descrição se enquadra aos meios de comunicação.
Edson Fachin
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou para manter a constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet.
“Vejo a necessidade de termos uma certa cautela ao arrostarmos [encarar] a concentração de poder, que é inequívoca das plataformas e suas empresas”, ressaltou o ministro.
“Não creio que esse tema necessariamente será enfrentado, ou solvido, ou esgotado, com a remoção das plataformas. Por isso, a minha divergência em relação ao remédio que está sendo empregado”, disse Fachin.
O ministro ainda acrescentou que acredita que “há uma necessidade de uma regulação estruturada e sistêmica, e preferentemente não via Poder Judiciário”.
Cármen Lúcia
No voto, a ministra afirmou que não deu provimento para tornar o Artigo 19 do Marco Civil da Internet inconstitucional. No entanto, considera que o dispositivo deve ser interpretado para ampliar as responsabilidades das plataformas.
A ministra frisou que a medida visa preservar o direito, como em casos de crimes contra a honra e o Estado Democrático de Direito. Segundo Cármen Lúcia, o tempo tecnológico de 2014, quando foi estabelecida a norma, é muito diferente do ano atual.
“A responsabilidade não é gerada pelo dano, é gerada pelo descumprimento de decisão judicial”, destacou.
Nunes Marques
O ministro do votou para manter a exigência de decisão judicial antes que redes sociais sejam responsabilizadas por posts de usuários. O voto do magistrado considera o artigo 19 do Marco Civil da Internet. Nunes Marques acompanhou a divergência, inaugurada pelo ministro André Mendonça.
Em seu voto, reconheceu as transformações do ambiente digital e as preocupações manifestadas por outros ministros, mas defendeu que eventuais mudanças no regime de responsabilidade devem ser feitas pelo Congresso Nacional, e não pelo Judiciário.
“Compartilho das preocupações quanto à necessidade de tutela adequada dos direitos fundamentais. No entanto, penso que o Congresso Nacional é o ambiente mais apropriado para conduzir essa discussão”, afirmou.