O acirramento das discussões em torno da meta de resultado primário de 2025 e dos três anos seguintes (ou mesmo possíveis mudanças no objetivo de equilíbrio fiscal em 2024) pouco antes do envio do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deixou temporariamente em segundo plano o debate sobre outra perna da política fiscal.
Além de estabelecer compromissos para a relação entre receitas e despesas, o arcabouço que substituiu o teto de gastos (Lei Complementar nº 200/2023) trouxe uma regra específica para a evolução das despesas públicas ao longo dos anos – que já tem gerado dores de cabeça no mundo político e atraído olhares do mercado financeiro.
Pela norma, os gastos públicos deverão crescer a uma proporção de 70% da evolução das receitas no exercício anterior, respeitando um intervalo de avanço em termos reais (ou seja, descontada a inflação oficial) de 0,6% a 2,5%. E caso o último resultado primário tenha ficado abaixo de uma banda de tolerância de 0,25 ponto percentual do centro da meta estabelecida, o fator de ajuste cai de 70% para 50%, reduzindo as despesas permitidas para aquele ano e afetando a série histórica para o futuro.
Apesar de a regra ser mais branda do que aquela prevista no teto de gastos original (que limitava a evolução de despesas de um ano à inflação acumulada no exercício anterior), integrantes da equipe econômica do governo federal já vislumbram um debate contratado para o futuro sobre o comportamento das despesas obrigatórias, que já correspondem a cerca de 91% das despesas previstas no Orçamento de 2024 – e só tendem a crescer caso nada seja feito.
O secretário-executivo do Ministério do Planejamento e Orçamento, Gustavo Guimarães, lança luz sobre o problema. Em entrevista ao InfoMoney, ele destacou os trabalhos feitos pela equipe econômica em direção à revisão de despesas previstas – sobretudo no caso de grandes rubricas orçamentárias, concentradas no lado das obrigatórias. Mas pontuou que eles não afastam a necessidade de um debate estrutural para garantir a sustentabilidade da política fiscal no futuro.
O governo espera incorporar, neste ano, uma redução na casa de R$ 10,9 bilhões apenas com a revisão de gastos do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). O movimento não impediu uma revisão para cima no montante que se espera empreender com benefícios previdenciários, conforme indicou a primeira edição bimestral do Relatório de Acompanhamento de Receitas e Despesas Primárias (RARDP), saindo de R$ 908,67 bilhões para R$ 914,24 bilhões. Mas suavizou o movimento, diminuindo a necessidade de bloqueio orçamentário já em março, que ficou em R$ 2,9 bilhões – justamente para garantir o cumprimento da regra de limite de despesas fixada pelo arcabouço fiscal.
Do total que se pretende economizar no INSS, cerca de R$ 5,6 bilhões vêm de esperados ganhos de eficiência com o uso de tecnologia na análise documental (Atestmed) para a concessão de benefícios por incapacidade temporária (o antigo auxílio-doença). Segundo Guimarães, a ideia é que o sistema passe a operar em sua plenitude a partir de maio, após um período de coexistência com as avaliações periciais tradicionais para um comparativo sobre resultados em termos de riscos de fraudes. As expectativas são de que o ganho de eficiência mais do que compense problemas eventuais com burlas.
O secretário pontua que a nova tecnologia tem ajudado a reduzir as filas do INSS – o que também influencia, em contrapartida, uma maior procura no curto prazo e maior pressão sobre as despesas do governo no curto prazo. “Quando a própria política é mais eficiente, ela gera uma demanda inicial que não existia antes. É como no mercado de trabalho: quando está aquecido, você está contratando e o desemprego demora para cair, porque aquela pessoa que estava fora da força de trabalho entra [no mercado em busca de recolocação]“, explica.
O raciocínio de produzir ganhos de eficiência a partir do uso de tecnologia deve ser incorporado em outras áreas do serviço público, como a própria gestão de precatórios. A ideia é formar parcerias com o Poder Judiciário de compartilhamento de informações sobre processos e identificar padrões em decisões desfavoráveis à União – o que pode ajudar a definir estratégias administrativas e mesmo de mudanças em legislação, além de, no longo prazo, potencialmente reduzir as derrotas do governo na Justiça.
“A revisão de despesas se tornou ainda mais importante agora. Se eu não fazemos revisão das políticas obrigatórias, não teremos espaço discricionário para sobreviver. No limite, se nada for feito, com as receitas crescendo, essas despesas obrigatórias vão crescer [em ritmo superior às demais] e vamos chegar em um determinado ano em que só vamos ter obrigatórias”, alertou Guimarães.
“A trajetória [dos gastos públicos] para o mercado é importante. Para os agentes econômicos, é importante darmos previsibilidade de quanto a despesa cresce. Mas fazer essa despesa [total] estar contida no copo vai depender da composição do que está ali. Se não, voltamos ao teto anterior, com a despesa obrigatória crescendo e eu ficando com menos espaço para a discricionária” – que foi um pouco do bloqueio que aconteceu agora”, pontuou o secretário.
Em regras de limitação de despesas públicas, como o antigo teto de gastos (mais austero) e mesmo o novo marco fiscal, quando uma rubrica de despesas cresce acima do permitido, outras (discricionárias) precisarão ser sacrificadas para compensar o efeito geral. Isso normalmente acontece com gastos obrigatórios, em que o gestor público não tem condições de escolher ou não pagar. É justamente o caso dos benefícios previdenciários, que abocanham 42% do total projetado de despesas no Orçamento de 2024 e acompanham o comportamento de variáveis como o salário mínimo, que voltou a contar com regra própria de valorização acima da inflação.
Apesar do nome, o grupo das despesas discricionárias também tem sua importância para a manutenção da máquina pública e a garantia de políticas públicas estratégicas para o país. Especialistas em contas públicas, inclusive, projetam um montante mínimo que deve ser reservado para estas rubricas de modo a assegurar o funcionamento mínimo do Estado (e evitar o chamado “shutdown”): algo entre R$ 80 bilhões e R$ 90 bilhões. Isso significa que, em algum momento, a pressão sobre as discricionárias exigirá uma discussão acerca da forma como evoluem as despesas obrigatórias.
Para Guimarães, que também coordena o Grupo de Trabalho de Revisão de Gastos Federais, o “spending review” em curso é fundamental para trazer racionalidade ao processo orçamentário e a execução de políticas públicas e deve ser incorporado de forma permanente pelo debate político brasileiro, mas com o cuidado de pentes-finos mal feitos ou soluções de curto prazo, que geram custos adicionais no futuro. O secretário reitera, no entanto, que o instrumento apenas adia o necessário debate sobre o tamanho das despesas obrigatórias e suas vinculações.
“Precisamos começar a pensar se fazem sentido todos esses vínculos”, diz Guimarães. Além das vinculações dos benefícios previdenciários ao salário mínimo, o governo é obrigado a executar pelo menos 15% da receita corrente líquida com a saúde e 18% da receita com impostos com a educação – regras recuperadas com o fim do teto de gastos. “Os pisos vão se impor, porque é uma questão matemática”, avalia o secretário.
“Esses dois [pisos] vão sempre crescer acima da regra de despesas. A matemática é que eles vão crescer mais. Como são muito grandes, já estão em um espaço considerável [do Orçamento] – independentemente de estar crescendo o copo para todo mundo. Eles estão sempre tomando um pouco dos [gastos] que não têm essa garantia”, pontua.
Qualquer mudança estrutural na questão, porém, exigiria discussão no Congresso Nacional. Como os pisos estão definidos na Constituição Federal, seria necessário aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para modificá-los – o que exige maioria de 3/5 em cada casa legislativa (ou seja, apoio de 308 deputados federais e 49 senadores) em dois turnos de votação em cada uma.
O debate também tem custos políticos relevantes junto à sociedade, que o governo Lula até o momento não indicou qualquer intenção em arcar.
Fonte: infomoney
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