Para além da função estética, do que vemos nos desfiles, a moda também é política. É neste conceito que se baseia o Ateliê Derequine, que promove a moda indígena e a alta costura dos povos originários no Amazonas.
Com pouco tempo de atuação, o projeto que começou com a confecção de máscaras de proteção individual, ainda na pandemia da Covid-19, já participou de eventos culturais, expandiu a sede para outros municípios e inclusive ajudou no desenvolvimento de figurino do programa “No Limite – Amazônia”, que estreia em 18 de julho.
“Aprimeira peça que fizemos foi pensada para contar nossa história, a história dos Witoto. Pegamos uma maloca, que representa o corpo da mulher, um tringulo, corpo que gera vida. Colocamos ele invertido e criamos a primeira peça, um poncho. A partir daí, começamos a fazer outras mais voltadas para vestidos”, explica Vanda Ortega Witoto, coordenadora do projeto.
Fotos: Pedro Furtado/ @by.pedrofurtado
A sede do ateliê fica no bairro Parque das Tribos, na zona oeste de Manaus. Primeiro bairro indígena reconhecido pela prefeitura da cidade, o local conta com habitantes de ao menos 35 etnias diferentes, mas foi da história do povo Witoto (também conhecido como huitoto, uitoto, murui, muinane, mi-ka ou mi-pode) que veio a força para alavancar a alta costura e ocupar as passarelas.
“A moda que produzimos é uma moda política, de demarcar corpos e comunicar sobre nossa história. Não é sobre vender roupa, é uma ferramenta de comunicação da nossa exitência, dos povos e dos territórios que estamos. O que torna diferente esse trabalho é ser artesanal, produzido por mulheres originárias, com memória de onde viemos”, afirma a coordenadora do ateliê.
Vanda é reconhecida mundialmente pelo ativismo indígena e pelo resgate histórico da herança do povo Witoto. A voz que pede mudanças, amplificada pela urgência do debate sobre o meio ambiente e as mudanças climáticas, também reafirma a potência ancestral e celebra os avanços, ainda que pequenos, conquistados nos últimos anos.
“Quando vestimos roupas produzidas por mulheres indígenas, com pessoas indígenas, elevamos nossa autoestima, nos tirando do lugar de pessoas feias, sem capacidade. É mostrar nosso conhecimento diante dessa estrutura que nos nega. É muito emocionante, não entramos na passarela de salto, vamos com nosso pé descalços, nossos cocares, nossas pinturas. Isso é muito grandioso, muito potente e mostramos isso através do trabalho”, completa Vanda.
De Amaturá à Manaus
Apesar da estreia nas passarelas ter acontecido em 2022, ainda sem o nome Ateliê Derequine definido, as origens do projeto datam de muito antes, ainda no município de Amaturá (distante cerca de 908 quilômetros de Manaus).
A forma de atuação do ateliê, além de política, é também familiar. Leia Witoto, a matriarca, foi quem começou a aprender costura e, posteriormente, ensinou às filhas que hoje atuam na fabricação das peças. Do Alto Solimões, ela trouxe os aprendizados da mãe e assim fazem Sandy e Vanda com as futuras gerações.
“A gente morava no interior e eu aprendi a costurar com a minha mãe, sempre fui bem curiosa. Comecei a fazer minhas roupas eu mesma, até que isso começou a me motivar a costurar. Nunca trabalhei, não terminei meus estudos, sou mãe de sete filhos e sempre trabalhei na roça. A Vanda me mandou uma máquina, lá pro município de Amaturá e comecei a cortar roupas e ganhar meu dinheiro assim, costurando, até eu vir pra cá [Manaus]”, conta Leia Witoto.
Com uma equipe familiar, juntamente com vizinhas ou “parentas”, como se chamam, o Ateliê Derequine não se enquadra ao modo de produção industrial. Pelo contrário, pretende respeitar o tempo da natureza e das nove mulheres que mantém a iniciativa, que conta também com componentes da etnia Mura.
“O nosso modo de fazer nossa arte respeita muito o nosso tempo, que não é o da indústria, queremos ter o tempo da natureza, de ciclos. A maioria das mulheres são mães, cuidam de seus filhos e não tabalham o dia todo. Cuidar dos filhos e a educação indígena são uma das coisas mais importantes da nossa cultura”, diz Vanda.
O ateliê que hoje começa a ser conhecido pelo Brasil, começou com uma pequena máquina de costura que fazia principalmente reparos simples. Tudo que bastou foi um curso de empreendedorismo, algumas doações para estrutura básica e a capacidade de usar as redes sociais para potencializar o negócio, inclusive, fora do país.
Desenvolvimento cultural e econômico
Das aproximadamente 2.800 pessoas que vivem no Parque das Tribos, a maioria veio de etnias do Alto Solimões e, depois, os que chegaram do Alto Rio Negro. Ali, frequentemente criam formas de expressão artística e também empreendimentos que fortaleçam a economia local.
Assim como o Ateliê Derequine é formado por mulheres semi-analfabetas, outras tantas iniciativas também são. Isso afasta-as de opções do mercado de trabalho que exigem qualificações e, por consequência, diminui o poder econômico de uma região já marginalizada.
Por estes fatores, um dos pontos de destaque da iniciativa do ateliê é a geração de renda. O projeto, que inclusive já confirmou uma nova sede em Novo Airão (distante 115 quilômetros de Manaus), ajuda também a empoderar e tirar outras mulheres da condição de vulnerabilidade econômica.
“Faço faculdade de gastronomia, tenho um negócio próprio, mas descobri que isso [costura] é uma paixão da minha vida também. É muito bom para a comunidade poder mostrar nosso trabalho e o potencial das mulheres indígenas. Somos conhecidos como um povo preguiçoso, mas não é verdade. Como não temos oportunidade lá fora, tem sido importante poder levar nossa cultura e a nossa história”, revela “Sandy” Witoto, componente da produção do ateliê.
Fotos: Pedro Furtado/ @by.pedrofurtado
Sandy diz ainda que, caso a comunidade fosse mais bem amparada, os moradores estariam com maiores possibilidades de desenvolvimento econômico. Assim, o objetivo do Ateliê Derequine é continuar com o crescimento para o fortalecimento do passado e do presente dos povos indígenas.
“Fico sem palavras com tudo que está acontecendo. A gente vê nossa cultura e converso com minhas filhas que não é uma peça de roupa só, é nossa cultura, nossa identidade. Esses grafismos significam muito pra gente, nossa cultura foi apagada. Fico imaginando, há muitos anos, quando que alguém ia usar uma peça feita por mim e por minhas filhas?”, reflete Leia Witoto.
O atendimento do Ateliê Derequine, que estampa a história nos tecidos que vão à passarela, é personalizado e com produção específica. As cores, grafismos e formatos continuam diversos e para corpos reais. Relatam, resgatam e representam gerações que vieram e as que ainda estão por vir. Como ponto de ruptura, materializam a moda da forma mais pura: política e estética.
1 comentário
Parabéns a minha parente wanda witoto pelo grande trabalho que vem fazendo, ela representa muito o povo indígena,uma mulher guerreiro que vai brilhar ainda mais